Distrito Federal

Sem inclusão

Mães denunciam marginalização e expulsões de crianças neurodivergentes em Colégio Militar Tiradentes, em Brasília

Especialista explica que modelo militarizado de ensino pode ser uma barreira na inclusão de estudantes neurotípicos

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Segundo uma mãe, que preferiu ter a identidade preservada, em 2023, o colégio tinha 52 neurodivergentes, em que sete foram reprovados e três jubilados - Foto: Joel Rodrigues/Agência Brasília

Mães de crianças neurodivergentes do Colégio Militar Tiradentes (CMT), em Brasília, estão denunciando que estes estudantes estão sofrendo uma série de marginalização na instituição. Em uma delas, é informado que a escola não dispõe de um Plano de Ensino Individualizado (PEI), além de estar acontecendo diversas evasões escolar, incluindo a expulsão de um estudante neurodivergentes.

Segundo a denúncia, a instituição recepciona 63 crianças com os mais variados diagnósticos, entre eles Transtorno do Espectro Autista (TEA), Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), Transtorno Opositor Desafiador (TOD), Deficiência Intelectual (DI). Além de transtornos de mente e de aprendizagem, como ansiedade generalizada, síndrome do pânico, depressão, dislexia, discalculia, disortografia, entre outros. Porém, muitas das crianças e adolescentes do CMT estariam sofrendo uma perseguição velada.

Mães com crianças e adolescentes que estudam no CMT relataram que há um “perdimento na visão institucional”, uma vez que o colégio apenas pontua e vislumbra alunos de alto rendimento, ou seja, aqueles que trazem nome à instituição de ensino ao serem aprovados em olimpíadas de conhecimento e vestibulares.

Segundo uma mãe, que preferiu ter a identidade preservada, em 2023, o colégio tinha 52 neurodivergentes, em que sete foram reprovados e três jubilados. “Eles se empenham para uma educação de qualidade, mas de qualidade para aqueles alunos que têm autonomia. Os alunos que são neurodivergentes, eles ficam marginalizados dentro da instituição. Então, eles têm mostrado algum tipo de esforço, mas não para esses estudantes, e isso tem trazido uma vazão escolar”, disse.

“A instituição minimiza e até ridicularizam a quantidade de crianças ‘laudadas’ que não conseguiram alcançar a promoção ao final do ano letivo em 2023. 'Apenas 7 das 58 de nossa instituição'. Esses sete estudantes são sujeitos de direito e merecem todo o respeito e o aporte necessário para que haja a efetiva educação, os preparando para uma vida digna, plena e capaz”, mostra a denúncia.

Projeto abrangente

Procurada pelo Brasil de Fato DF, a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), responsável pelos colégios militares, informou que a proposta educacional do CMT é inclusiva e se baseia em um projeto pedagógico abrangente, que considera as especificidades de cada aluno. Eles relatam que, através de Planos de Ensino Individualizados (PEIs), elaborados em consonância com as exigências legais, é garantido que todos recebam o suporte necessário para progredir em seus estudos.

“Alunos com necessidades educacionais especiais, como transtornos de aprendizagem ou deficiências, contam com o acompanhamento especializado de pedagogos, médicos e psicólogos. Através de uma rotina de estudos estruturada e individualizada, trabalhamos para suprir lacunas de aprendizado e garantir o desenvolvimento pleno de cada um”, disse a PMDF em nota.


PMDF informou que a proposta educacional do CMT é inclusiva e se baseia em um projeto pedagógico abrangente. / Foto: Acácio Pinheiro / Agência Brasília

Porém, ainda segundo as mães, a escola não dispõe de PEIs, já que há uma negligência às crianças que carecem de um plano de acessibilidade e adaptabilidade no processo de ensino-aprendizagem. “Isso traz um desafio, pois, as avaliações, modo de verificação do processo educacional, se tornam um ciclo viciado e sem propósito para o qual foi instrumentalizada a avaliação, a aprendizagem”, mostra a denúncia.

Barreiras

A ativista, mãe atípica e colunista do Brasil de Fato DF, Andrea Medrado, explica que, o que foi visto na instituição, é a falta do direito de todos os estudantes terem um olhar individualizado. “O que as famílias relataram é que eles estavam ali exigindo os direitos dos filhos, até porque o serviço de Atendimento Educacional Especializado  (AEE) não estava existindo. Então, existe uma barreira aí de aprendizagem para o estudante, onde eles foram convidados a se retirar”, disse Andrea.

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A especialista Érica Curado, da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça), explica que esses conflitos ocorrem justamente em razão das escolas possuírem um modelo único, como nas escolas militarizadas. Segundo Érica, para essas escolas serem realmente inclusivas é necessário repensar a cultura de padrão e que isso ainda é um grande desafio para escolas de modelo militar.

“Nessas instituições têm um modelo hierárquico e que, de certa forma, também destaca o mérito, que é quando um estudante que se destaca mais que o outro. Então, há estudantes que não se encaixam, como no caso dos alunos neurodivergentes”, disse Érica explicando que também existem estudantes neurodivergentes que podem sim se adaptarem a esse modelo.

Exigência de diagnóstico

Na denúncia, também é informado que a escola vem se prevalecendo de uma portaria emitida pelo Ministério da Saúde (Resolução Conjunta nº 14) como impeditivo de proporcionar as adaptações para alunos que apresentam laudos, e não diagnósticos. Segundo relatado, a escola afirma que a portaria seria suficiente para essa exigência. Desta forma, com a falta de documento, “a instituição não tem obrigação legal” que valha ao atendimento das diretrizes de acesso pelo à educação e suas devidas adaptações, como foi dito na denúncia.

Ainda segundo uma das mães, que preferiu se manter anônima, o colégio obriga todos os responsáveis a trazerem para a escola um diagnóstico. “Se a criança chegasse aqui dentro da instituição só com o laudo médico, era a mesma coisa que nada e muitos alunos perderam o direito de adaptação ou adaptabilidade porque tinham no momento o laudo e não diagnóstico”, disse.

Érica explica que essa portaria é uma situação de conflito, já que estabelece uma visão médica prevalecendo sobre a visão pedagógica. “Eles estão falando que o laudo não é suficiente e que é preciso ter pareceres do médico. Porém, isso não faz sentido, porque eles como escola, têm que ter sim uma visão baseada dentro do modelo social da diversidade. O médico não vai ditar norma ali dentro da escola”, disse.

A especialista ainda aponta que há um conflito nesta imposição da instituição, uma vez que eles estabelecem que há um modelo fixo militarizado, mas o mesmo tempo é solicitado uma visão médica para dar acessibilidade. Érica ainda explica que esse pensamento rompe com a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), que estabelece que a escolas devem ofertar educação inclusiva, vedada a exclusão do sistema educacional geral sob alegação de deficiência.

“Esse impeditivo vai contra o modelo social da deficiência, é o modelo médico que tá na escola. Então, isso assim rompe a Lei Brasileira de Inclusão, rompe muitos preceitos do que a gente fala de inclusão e acessibilidade na escola”, explica Érica.


Ética, moral, patriotismo, hierarquia, disciplina, inovação, estão entre os Valores do CMT. / Foto: Colégio Militar Tiradentes

Caso de expulsão

Recentemente, um dos casos de expulsão do colégio que chamou atenção de responsáveis dos estudantes neurodivergentes foi de uma criança com TEA. Segundo a mãe do aluno, que também preferiu ter o nome preservado, no colégio há um sistema de Ficha de Ocorrência (F.O), onde o estudante, ao longo da carreira acadêmica, vai somando pontos. No caso deste estudante, houve a somatória dos F.Os negativos, o que levou à expulsão.

A mãe explica que, por ele ser uma criança neurotípica, há uma maior facilidade de ter comportamentos incoerentes para escola. “A instituição, por falta de conhecimento sobre o diagnóstico dele, leva a ‘ferro e fogo’ e aí vai tirando o comportamento dele ao logo do ano”, explicou.

"Foi uma insensibilidade da escola com ele, porque ele foi estudar num dia e já não tinha mais nenhuma matrícula dele no acesso. Ele foi despedir dos coleguinhas, e já não tinha o nome dele na chamada. Sentimos como se a escola tivesse se livrado dele. Deu a impressão de que eles comemoraram quando meu filho saiu, de que realmente o meu filho era um problema para escola, que eles se livraram, de que não era uma criança que mereceu tá ali e que é uma escola pública, financiada pelo Estado”, disse.

A mãe também conta do sentimento de marginalização que a escola dá aos estudantes neurodivergentes no geral. “Eles só querem saber de alunos que têm nota comportamental alta. Ele chegou na escola, não tinha o nome dele na chamada. Quando ele foi se despedir, nem falou nada para ninguém que foi expulso ficou com vergonha. Então, o dano mental para ele foi muito grande", disse.


O Colégio Militar Tiradentes é integrante do Sistema de Ensino Público do Distrito Federal. / Foto: Colégio Militar Tiradentes

Ministério Público

Segundo as denúncias dos responsáveis dos estudantes neurodivergentes do CMT, o Ministério Público (MP) também já recebeu denúncias referentes a esta demanda. Para eles, um parecer técnico do órgão vai agregar com especificidade qualificada e a verificação ampliada do caso, além de averiguarem os relatos.

Ao jornal, o Ministério Público do Distrito Federal e Território (MPDFT) informou que a Promotoria de Justiça de Defesa da Educação (Proeduc) está acompanhando os casos que foram judicializados pelas famílias e também instaurou procedimento próprio para verificar a situação do ponto de vista dos direitos coletivos. O MPDFT afirmou também que serão requisitadas informações à escola para que a Proeduc avalie que medidas devem ser tomadas. 

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Edição: Márcia Silva