Paulinha viveu com olhos muito abertos aos princípios da igualdade, da justiça e da solidariedade
Dia 26 de julho, esta data que hoje marca o nascimento do Brasil de Fato no Distrito Federal, coincide com a data do nascimento de Ana Paula Sampaio Alves. Mulher forte, amiga, militante, lutadora do povo, amante da ciranda, da fogueira, da música, dos livros, da poesia, da revolução, nascida em 26 de julho de 1979, partiu no outono, dia 11 de maio de 2019. Carinhosamente, Paulinha.
Nossa amizade, um grande amor. Juntas gestamos, parimos, criamos, marchamos, dançamos, sonhamos. O que preciso escrever não cabe nessas páginas, então vou escolher algumas lições de vida e de luta, entre tantas que ela nos presenteou.
Vejam um texto (adaptado) que Paulinha me escreveu no ano de 2012, inspirada na visita a uma ocupação pelo direito à moradia.
Rendição
Eu me rendo [à luta popular]
[À] demonstração de força e coragem, [à] capacidade de ação
[Na luta se supera] o despeito, a falta de energia, a frustração
Todo dia chega mais um.
No sorriso, nos fatos ocorridos, na energia da galera e no quanto estão dispostos a lutar.
Só vão sair quando ganharem
O grupo é bom
Enfrentam as leis, não têm medo não.
Sobre a morte, acontece lá ou na cidade, quem vai controlar mais de mil...
Tem divisão de grupos e cozinha coletiva
Eu vi o brilho nos olhos
São os desempregados ou subempregados. São os lutadores do povo.
Vida longa à Luta (...)
Que nenhuma derrota nos faça baixar a cabeça.
A luta é pedagógica: lembro de quando participei da minha primeira ocupação. Anos de luta e pouquíssimos avanços. Enfim, temos que ser solidários, ter identidade de classe, porque quem está lá, é a população que não se encaixa em critério nenhum de políticas de moradia.
Ana Paula
Educadora Popular Militante (Ocupação MTST Novo Pinheirinho, 17 de maio de 2012).
Em sua militância, inspirada em Paulo Freire, teve um papel fundamental como educadora popular, que por onde passava ensinava a importância da coletividade e dialogicidade, possibilitando uma melhor leitura e intervenção da realidade social, política e econômica.
Joana Tavares, editora do Brasil de Fato de Minas Gerais, também compartilhou uma mensagem encaminhada pela Ana Paula em 30 de março de 2016:
"Oi,
Fico vermelha de pensar a distância e de ver que a gente burocratiza o amor, que sentimos falta, que queremos colo. Mas alguém nos ensinou que é necessário pedir licença, inventar motivo e daí a gente vai deixando o tempo seguir. Você acredita que quase não te escrevo por achar que o tempo é corrido e cruel?
Te escrevo do Palácio do Planalto onde tudo parece ruir, sinto como se tivesse terminado uma festa aonde nunca fomos convidados, mas temos que limpar o salão. Os discursos só tocam se vierem de fora não de dentro. E quem vem de lá sente que sempre foi lá o lugar de se criar e de se tecer o amanhã. Gostaria que fosse daqui e de todos os lugares, que tomássemos enfim o Palácio! Que tomássemos o Congresso e as ruas. O que sinto é que estando nunca estivemos! E é muito dolorido essa constatação! Saber que foi um golpe e que era tão óbvio e ninguém viu sua construção. Saber que estava sendo arquitetado e nós estávamos provavelmente protocolando um documento ou lançando alguma Política.
Que esquecemos que nunca e em tempo algum experimentamos tempo de paz, e talvez a dinâmica Workaholic, nos tenha atropelado e sair tendo feito tanto com valor de pouco, é a grande crueldade, a ferida aberta. Se engavetou a estratégia em um acordo qualquer...
Te cheiro imensamente e estarei aqui sempre pra te acolher e receber.
Ana Paula Sampaio (2016)"
Paulinha viveu com olhos muito abertos aos princípios da igualdade, da justiça, da solidariedade e pensava políticas públicas de mãos dadas com a justiça popular. Ela teve orgulho na eleição do primeiro Presidente da República Operário e da primeira Presidenta Mulher do Brasil, e percebia importante o momento histórico que estava vivendo. Logo sentiu o brutal ataque aos direitos sociais que representava o golpe contra Dilma Rousseff em curso.
No Distrito Federal, esteve presente na construção do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) - atualmente Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores Por Direitos - desde a organização dos primeiros acampamentos. Foi ativa na luta contra a violência à mulher, amiga e colaboradora do Movimento das Trabalhadoras e dos Trabalhadores Sem Terra do DF e no Brasil. Foi atuante na organização de espaços de cultura com a juventude do Partido dos Trabalhadores no Paranoá. Atuante junto à Central de Movimentos Populares. Wil, o poeta, me escreveu que todo espaço que tem organização política no Paranoá conheceu Paulinha. Hoje, em homenagem, ela empresta o nome à Casa Ana Paula Sampaio, uma casa do Levante Popular da Juventude, do MTD e da Consulta Popular, espaço de apoio para trabalhos de militância do projeto popular no DF.
Mãe da Ana Flor (11 anos) e do Kobe Douglas (7 anos), companheira de vida do Jackson, Paulinha demonstrava grande amor e imenso valor à família, à ancestralidade, à mãe, ao pai, às irmãs e a cada um de seus amigos.
Corajosa, sensível e incansável, nos deixou ensinamentos de generosidade, resistência, simplicidade e alegria, qualidades aliadas com muita coragem, determinação na luta por seus ideais e compromissos de vida. Márcio Rabat escreveu o seguinte: "Ana Paula, a Paulinha, era tudo que devíamos ser. A encarnação de nossos valores. Acolhedora até não mais poder, ninguém se sentia mal - vindo a seu lado. Mas se indignava, e como se indignava, com qualquer injustiça. Sendo o que de melhor há em nós, ela está sempre conosco. Acolhendo e cobrando, cobrando e acolhendo".
E quando chegou a sua hora de morrer, Paulinha não estava com o coração cheio de medo da morte. Ela pouco chorou e não teve arrependimentos. Simplesmente, nos presenteou com mais ensinamentos de vida, nos acolheu, riu, dançou, lutou, continuou ajudando pessoas. Como conta Iracema Moura: "quando soube do diagnóstico da Paulinha, ainda sob o impacto da notícia, liguei para ela arrasada. Sabia que ela já estava enfrentando os percalços da doença. Qual não foi minha surpresa quando ela me atendeu sorrindo a ligação. Relatou que, mesmo sentindo-se com um pouco de mal estar, tinha colaborado na organização e participado do "Banquetaço", na Rodoviária do Plano Piloto (Brasília-DF), em protesto pelo fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Essa era a Paulinha, incansável, lutadora, que soube unir ternura, gentileza e a bravura necessária de uma mulher, mãe, trabalhadora e militante da revolução. Saudades demais".
Em sua última batalha, lutou cinco meses contra um câncer fulminante, enfrentando os inúmeros problemas do sistema de saúde pública no DF. No tratamento do câncer, voltou sua atenção para a saúde pública. Frequentou alas que para ela eram desconhecidas no Sistema Único de Saúde e, se continuasse viva, certamente, faria da saúde e da melhoria do SUS, universal, gratuito e de qualidade, a sua bandeira hasteada e a sua próxima pauta de luta. Solidária, ao compartilhar o quarto com uma mulher que fez mastectomia, imediatamente falava em iniciar campanhas para reconstituição de mamilos, analisando a realidade de mulheres que passam por esta situação.
Enfrentando a dor, Paulinha foi fortaleza, como quando ela acolheu um jovem médico que, impotente na condição de não ter nenhum horizonte para a cura do câncer de pâncreas, falou com ela sobre como gostaria de viver os últimos de sua vida. Com ela e na sua frente, o médico chorou, e Paulinha, consciente e tranquila, acolheu e consolou. Por fim, escolheu uma abordagem de tratamento menos invasiva e mais paliativa (nome este que ela não gostava) para desfrutar dos seus últimos momentos com lucidez ao lado das pessoas que amava.
Paulinha foi alegre, e nos seus últimos dias me pediu: Ju, avisa todo mundo! Estou morrendo, tenho pouco tempo e quero encontrar os amigos e me despedir! E assim, chamei quem pude e fizemos do quarto do hospital um lugar de sarau, de música, de desenhos – e Flor e Kobe desenharam lindamente, de oração, para os que oram - e as irmãs de Paulinha cantaram lindamente, de ternura, de lágrimas e de amor. Estava cheio, mas lá e aqui, faltou muita gente. Sintam-se presentes! Ela lutou bravamente e cantou a sua música da morte, como uma princesa guerreira indo para casa:
"Ana chamou sua filha de flor
plantou pra todo lado algo maior do que família, antes dessas milícias
ela meio menina provou com a vida que militância não tem compromisso com Militar
eu levaria uma vida pra falar da falta que faz Ana...
ela fez militância como se faz amor
Ana Semente - Wil Melo"
Paulinha, presente, presente, presente!
* Ju Amoretti é cientista social, psicóloga, pesquisadora de mulheres, direitos humanos e pensamento social latino-americano.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.
Edição: Flávia Quirino