Durante muitos anos, a bailarina Inara Ramos teve que enfrentar uma rotina de recorrente discriminação no universo da dança clássica. Moradora do Gama, frequentou, desde os 12 anos de idade, diversos espaços profissionais de balé, em busca de alguma perspectiva de inserção. Em raríssimas oportunidades, contudo, pôde encontrar referências profissionais que tivessem, minimamente, alguma semelhança com sua história de vida.
“Eu comecei a participar do Seminário Internacional de Dança de Brasília, onde ofereciam bolsas de estudo para bailarinas e bailarinos brasileiros em companhias profissionais. Todas as bailarinas eram brancas e muito magras. Ali, eu já percebi o tamanho das barreiras que eu teria que ultrapassar para conseguir me profissionalizar”, declarou.
Seu contato com o universo profissional da dança teve início quando começou a estudar balé clássico com a Mâitre Gisele Santoro, no Teatro Nacional de Brasília. “Ninguém era negra, ninguém estudava em escola pública, ninguém se parecia comigo. Era um choque de realidade, eu ia de ônibus do Gama para o Plano Piloto, e isso já era uma desvantagem enorme. As meninas tinham motorista, enquanto eu fazia um percurso de 1h30 de ônibus, todos os dias, para poder dançar”.
Junto com as desvantagens econômicas e com a falta de representatividade, Inara passou a enfrentar, também, observações sobre a inadequação do seu corpo, em meio a incentivos persistentes para que buscasse outros movimentos mais adaptáveis a biotipos como o dela, lidos como corpos não ideais, corpos invasores, corpos dissidentes no interior dos grupos profissionais que pretendia integrar.
Nada mais violento para um bailarino, ressalte-se, para quem o corpo representa o mundo - meio e feixe de expressão de afetos e emoções, do que supor sua anulação. Esse processo trouxe consigo um imenso sofrimento psíquico. Ainda adolescente, Inara iniciou uma enorme quantidade de dietas, desenvolveu transtornos alimentares, e passou, por fim, a esconder o próprio corpo, sentido e obra de sua dança, durante as aulas de balé.
Reprodução acrítica
Na avaliação da professora de balé clássico Karitiana Teixeira, a reprodução acrítica desse modelo estético de dança traz um conteúdo político que se forma, sobretudo, na perpetuação das ausências, ou seja, no silenciamento da questão racial que se inicia nos próprios espaços de formação de professores e professoras de balé. “Os cursos de dança abordam somente questões de técnica e de metodologia. A formação de professor também ocorre em um ambiente bem parecido com o local que o estudante encontra quando ele entra no mundo do balé. É um espaço branco, acrítico, despolitizado, de elite”.
Um dos grandes obstáculos que aponta, portanto, para a superação dos cruéis padrões estéticos ainda hoje vigentes no mundo da dança, que revelam a reprodução de um ambiente misógino e profundamente racista, é a padronização dos corpos de baile das companhias profissionais de balé clássico. “As oportunidades são cortadas, não porque a pessoa não possa dançar, mas porque os lugares se recusam a mudar suas ideias de funcionamento. Veja bem. Aqui só tem gente alta, magra e branca. Para o balé sair desse lugar totalmente racista, elitista e dessa cultura da magreza, ele precisa estar aberto a destruir esse conceito de padronização que ele mesmo inventou. O corpo de baile não tem diversidade, é esperado que todas as bailarinas tenham a mesma altura e o mesmo tipo físico. Para mim, isso é a primeira coisa que precisa ser desconstruída. A gente precisa mostrar que um corpo de baile diverso, que reflete a sociedade como ela é, é ainda mais bonito de se ver. A gente não precisa ter várias cópias da mesma pessoa”.
Além disso, a ausência de políticas públicas reforça as desigualdades de acesso e formação a jovens talentos das periferias brasileiras. Um exemplo mencionado por Teixeira é a concentração das oportunidades de formação em dança em escolas particulares, geralmente concentradas no Plano Piloto. “As artes, em geral, têm pouco apoio. Os projetos sociais que estão interessados em democratizar a dança e em fortalecer os complexos culturais periféricos são reféns de editais do governo que são esporádicos, descontinuados, possuem tempo determinado. É praticamente impossível um jovem de uma cidade satélite concluir sua formação por meio desses projetos, e muitos deles não têm condições de se deslocar. Essa concentração espacial de oportunidades reflete a própria dinâmica social de invisibilidade das populações que vivem fora do Plano Piloto”, explica.
Em 2019, Inara participou novamente do Seminário Internacional de Dança de Brasília e, desta vez, no lugar de julgamentos silenciosos ou expressos, encontrou acolhimento e valorização. O encontro com Endalyn Taylor, professora de Artes Negras da Universidade de Illinois e ex-primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem, companhia de balé que surgiu, em 1969, com a proposta de ser a primeira companhia de balé negra dos Estados Unidos, mudou sua vida para sempre. “Eu via, enfim, alguém parecida comigo que tinha chegado longe, que tinha dançado na Broadway, e que notou o meu talento, não apesar do meu corpo, mas com o meu corpo; através dele. Ela me deu uma bolsa de estudos para uma graduação completa na Universidade de Illinois. Foi o momento mais emocionante da minha vida”.
Após essa primeira vitória, Inara não parou mais. Durante a pandemia, começou a fazer aulas sozinha, afastada dos olhares e julgamentos externos, o que também possibilitou que esse processo de recompreensão se potencializasse. Sua dança floresceu ainda mais. No Seminário de 2020, além de ganhar uma medalha de prata na modalidade Solo Contemporâneo, Inara ganhou mais cinco bolsas de estudo para participar de festivais de dança e cursos profissionalizantes.
Bolsa de estudos
Hoje, ela busca integrar um curso de aperfeiçoamento em Balé Clássico e Contemporâneo na renomada companhia Alonzo King LINES Ballet, de São Francisco, que mantém um elenco misto, exemplo para todas as companhias de dança do mundo. Apesar de ter conseguido uma bolsa integral, Inara ainda precisa custear as despesas para retirar o visto, comprar as passagens, custear alimentação e hospedagem durante sua estadia nos Estados Unidos.
“É muito cansativo pensar que eu posso não conseguir ir por falta de condições financeiras. Em abril, eu comecei a campanha no Instagram, um projeto chamado I have a dream, com o objetivo de arrecadar dinheiro. Inicialmente, eu comecei com uma rifa, e agora eu comecei a vender saias de balé feitas pela minha mãe e pela minha avó. Todas as coisas, minha história e o porquê da campanha, estão nesse perfil do Instagram”.
Como se vê, não basta talento, vocação, habilidades físicas e força psíquica para que uma bailarina possa sonhar com um posto em uma renomada companhia de dança no país ou no exterior. O racismo e as desigualdades econômicas, camuflados com as mais distintas denominações, ainda persistem como obstáculo, muitas vezes intransponíveis, às jovens bailarinas negras. O caso da bailarina Inara Ramos, infelizmente, é uma exceção, fruto de um esforço pessoal desproporcional que ainda tem uma última barreira, dessa vez econômica, a superar.
Edição: Flávia Quirino