O abismo social se alarga no ritmo da intensificação da austeridade fiscal e o povo fica às margens
O desespero no olhar de uma criança
A humanidade fecha os olhos pra não ver
Televisão de fantasia e violência
Aumenta o crime, cresce a fome do poder
Boi com sede bebe lama
Barriga seca não dá sono
Eu não sou dono do mundo
Mas tenho culpa porque sou filho do dono
Filho do Dono, de Flávio José
Enquanto aumenta-se o número de bilionários no Brasil, aumenta-se também as pessoas em situação de pobreza numa conjuntura tão adversa e complexa, uma pandemia em meio a uma crise política e econômica.
O abismo social se alarga no ritmo da intensificação da austeridade fiscal e o povo fica às margens de um sistema adoecedor, que castra potencialidades de crescimento especialmente de quem não faz parte do grupo privilegiado - homens, brancos e heterossexuais.
O resultado é a perpetuação do retrato cantado por Flávio José desde 1996, que denuncia a desigualdade e a fome diante da negligência dos poderosos.
Ah, a fome… E pensar que em 2014 ganhamos destaque no mundo todo por ter saído do Mapa da Fome da ONU. Mas, o desmonte de políticas públicas estruturais que se instaurou naquele mesmo ano, gerou graves consequências em direitos sociais consagrados e modificou rapidamente a tendência de melhora na alimentação e nutrição da população brasileira.
Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, o nosso quadro de segurança alimentar e nutricional - ou seja, de ter acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais - hoje é comparável ao que tínhamos em 2004.
Pandemia
A situação se complexifica ainda mais após a chegada da pandemia, como consequência do aumento do preço dos alimentos, da diminuição do poder de compra e das mudanças do consumo alimentar devido ao isolamento social.
O grupo de pesquisa “Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia” publicou este ano um estudo que analisa os efeitos da pandemia da Covid-19 sobre a alimentação da população brasileira.
Os resultados são assustadores: quase 60% das 2.000 pessoas entrevistadas tinham algum nível de insegurança alimentar e 15% estavam em situação de fome.
O grupo discute que o recebimento do auxílio emergencial, aposentadoria ou do Programa Bolsa Família, apesar de atenuar, não foi suficiente para proteger a população contra os revezes econômicos que impactam a alimentação e nutrição.
Fatores sociais e econômicos afetam diretamente o que comemos, e há uma preocupação concreta com a redução do valor do auxílio emergencial. Se com R$ 600 era precário, com até R$ 375 as cidadãs e cidadãos precisaram se expor à pandemia e a condições de trabalho precárias ou de mendicância para sustentar sua família.
No Distrito Federal, por mais privilegiada que seja a situação, é possível ver o aumento de pessoas nas ruas do Plano Piloto, Taguatinga, Ceilândia, Gama e Núcleo Bandeirante e da disparidade social quando se vai às regiões administrativas mais distantes do centro.
Fomos obrigadas e obrigados a escolher entre saúde e economia, quando a economia só consegue girar com pessoas saudáveis e com condições de trabalhar.
Problemas assim seriam evitados se houvesse um plano nacional de enfrentamento da pandemia, com coordenação alinhada entre união, estados e município, a compra das vacinas desde cedo, a organização do SUS sem exaurir os profissionais, condições de vida e trabalho dignos para a população. A realidade hoje seria diferente.
Em contraste com a inércia do governo, a sociedade civil assumiu seu papel como “filho do dono” e articulou centenas de iniciativas de solidariedade para tentar mitigar o contexto de urgência.
Avanços
Estão sendo realizadas desde ações pontuais de doação de alimentos a ações de organização política popular em comunidades pelo país, as quais colocam em destaque necessidades presentes há décadas que foram acentuadas a partir de 2020.
Não podemos normalizar a perda de direitos trabalhistas, de moradia, de alimentação adequada e saudável. Essas pautas precisam estar sempre acesas na população, especialmente para que os indivíduos percebam que a luta coletiva tem maior força e impacto concreto na vida.
Vamos mudar a realidade conhecendo a história, mantendo viva na memória do povo as graves consequências na qualidade de vida por causa da demora da compra de vacinas, da desvalorização do trabalho, do descaso com as mais de 550 mil vidas perdidas para a Covid-19 e com as milhões de pessoas com fome, do perdão de dívidas bilionárias em detrimento do desfinanciamento da saúde pública, da educação pública e da ciência.
Precisamos manter nossos olhos abertos e corações solidários para combater o descaso e o ódio tão presentes hoje em dia.
Não vamos almejar voltar ao que éramos antes da pandemia, porque a realidade lá não era a que merecemos.
A fome já existia, junto com todos os fatores que a determinam. O que precisamos é progredir com um plano de nação mais popular, com equidade, com empregos dignos e inclusivos, com alimentação adequada e saudável, saúde e educação.
Referências:
MANIFESTO NACIONAL POR TRABALHO DIGNO, Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos – MTD, Brasil, Maio de 2021.
Galindo, Eryka; Marco Antonio Teixeira, Melissa De Araújo, Renata Motta, Milene Pessoa, Larissa Mendes e Lúcio Rennó. 2021. “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil.” Food for Justice Working Paper Series, no. 4. Berlin: Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy. DOI 10.17169/ refubium-29554 ISBN: 978-3-96110-370-6
Rede PENSSAN. VIGISAN: Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Brasil: 2021.
*Juliana Machado é nutricionista e milita pela saúde e segurança alimentar e nutricional no MTD (Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direito), no Cebes (Centro Brasileiro de Estudos em Saúde) e na Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
Edição: Márcia Silva