No mês da Mobilização Nacional Indígena, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Augusto Xavier da Silva, compareceu à audiência pública realizada na quarta-feira (11) pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias e pela Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, para debater a política indigenista do governo Bolsonaro.
Sua presença atendeu a um requerimento elaborado por nove parlamentares, com o objetivo de ouvir esclarecimentos sobre recentes tentativas de criminalização de lideranças indígenas promovidas pela Funai, materializadas na abertura de inquéritos policiais contra os líderes indígenas Sônia Guajajara e Almir Suruí, além de associações indígenas, servidores indigenistas da própria instituição federal e assessores do povo indígena Waimiri Atroari.
Em sua apresentação, Xavier buscou normalizar os retrocessos impostos aos Povos Indígenas, a exemplo da tentativa de legalização da mineração em Terras Indígenas; a prática ilegal de arrendamento desses territórios, renomeada com o eufemismo de “parcerias agrícolas”; a imposição de determinado modelo de desenvolvimento econômico, baseado nos métodos produtivos do agronegócio; a retomada do clientelismo, materializada na permanente cooptação de aliados de sua gestão e promoção estatal de divisões internas entre povos e comunidades indígenas; a defesa da aplicação da tese jurídica ruralista do “marco temporal” aos processos de regularização fundiária de Terras Indígenas; a defesa do direito de propriedade de invasores desses territórios em situações conflitivas locais e, por fim, as amplas tentativas de criminalização de lideranças indígenas, servidores públicos e indigenistas promovidas por iniciativa da atual gestão do órgão.
Além desses pontos, Xavier tentou apresentar justificativas legais para a decisão política de paralisar todos os procedimentos administrativos de demarcação de Terras Indígenas em curso na instituição, utilizando como argumento a necessidade de aguardar a decisão do STF que irá definir o futuro das demarcações de Terras Indígenas no país.
Instrução Normativa
Uma das questões mais polêmicas apresentadas e defendidas pela Funai encontra-se no conteúdo da Instrução Normativa nº 09/2020. A medida tem por finalidade fornecer, a proprietários e a possuidores privados, a certificação de que os limites de seus imóveis não incidem sobre os limites de Terras Indígenas, permitindo que possam regularizar suas propriedades e acessar linhas de crédito, por exemplo. A partir da interpretação legal da nova normativa, o conceito de Terra Indígena foi restrito à situação de Terra Indígena homologada.
“A que interesse obedece a alteração de regramentos que promovem a regularização de invasões e o esbulho possessório em Terras Indígenas?”, questionou a deputada federal Joênia Wapichana, única parlamentar indígena, sobre o conteúdo da normativa.
A Instrução Normativa anterior (IN nº 03/2012), ao contrário, possibilitava que, antes do Decreto Homologatório Presidencial, fosse possível inscrever os imóveis privados incidentes em Terras Indígenas em processo de demarcação, em bancos de dados restritivos de posse, reconhecendo a prevalência do direito originário das terras tradicionais indígenas aos títulos de propriedade ou posses privadas.
Defesa de teses ruralistas: política de des-demarcação
Na avaliação da Associação Indigenistas Associados (INA), que representa as servidoras e os servidores da Funai, a medida transforma a instituição “em instância de certificação de imóveis para posseiros, grileiros e loteadores de Terras Indígenas”, passando a considerar como legítimos “proprietários” de áreas em disputa os invasores privados.
A ilegalidade da medida fez com o Ministério Público Federal ingressasse com mais de 20 ações contra a IN 09/2020, o que resultou em sua suspensão em pelo menos quatro estados em 2020.
Marco Temporal
Aliada à defesa institucional da normativa ruralista que intentou apagar, no papel, a existência de quase metade das Terras Indígenas do país, como demonstrado pelo estudo técnico elaborado pela INA, o Presidente da Funai apresentou, ainda, defesa expressa da aplicação da tese do “marco temporal” como estratégia para promoção da segurança jurídica nos processos de regularização fundiária de Terras Indígenas.
Como explica a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), de um lado, encontra-se a chamada ‘teoria do indigenato’, tradição legislativa que vem sendo adotada desde o período colonial e que reconhece o direito dos Povos Indígenas sobre suas terras como um direito originário, ou seja, anterior à formação do Estado. A Constituição Federal de 1988 segue explicitamente essa tradição.
Do lado oposto ao movimento indígena se encontra a reinterpretação da Constituição, proposta pela tese político-jurídica do chamado “marco temporal”, segundo a qual os Povos Indígenas só teriam direito às terras que estavam sob sua posse em 5 de outubro de 1988.
Segundo a APIB, na prática, o “marco temporal” legitima e legaliza as violações e violências cometidas contra os Povos Indígenas até esta data.
“Uma realidade de confinamento em reservas diminutas, remoções forçadas em massa, tortura, assassinatos e até a criação de prisões. Aprovar o “marco temporal” significa anistiar os crimes cometidos contra esses povos e dizer aos que hoje seguem invadindo suas terras que a grilagem, a expulsão e o extermínio de indígenas é uma prática vantajosa, pois premiada pelo Estado brasileiro”, afirma nota da entidade.
Julgamento decisivo
A Nova Funai, porta-voz do agronegócio brasileiro, também tem buscado vincular todos os processos de demarcação de Terras Indígenas à tese ruralista. Segundo Xavier, os processos administrativos que tramitam na instituição só serão retomados após o julgamento da repercussão geral referente ao tema, em curso no Supremo Tribunal Federal.
Trata-se da controvérsia territorial em torno da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ (SC), do Povo Indígena Xokleng, cujo julgamento, pautado para 25 de agosto de 2021 no STF, contará com a resolução do Tema nº 1031, apresentado como “a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional”, o que definirá, na prática, o futuro das Terras Indígenas no país.
Produção tradicional indígena
Aliado declarado dos setores ruralistas brasileiros, como bem fez questão de afirmar na audiência, Xavier fez coro às falas discriminatórias do deputado mato-grossense Nelson Barbudo.
O Presidente da Funai chegou ao ponto de atacar a produção de base familiar do Parque Indígena do Xingu. “Eu vi as roças de toco no Xingu e é deprimente o jeito que eles fazem. Isso aí é desumano. São as mulheres que fazem, levam as crianças e deixam no sol. Um trator faz isso aí em 15 minutos, bota uma grade e resolve o problema”, afirmou.
Ao contrário do que aponta o responsável pela instituição federal encarregada de defender os direitos dos Povos Indígenas no país, as roças de toco constituem um sistema complexo de agricultura, heterogêneo, altamente associado ao conhecimento tradicional e que fornece alimentos diversos, diferentemente dos sistemas baseados em monocultivos que a Funai tem promovido nos territórios indígenas, caracterizados pelo comprometimento da segurança alimentar e pela promoção da dependência do mercado para acesso a itens básicos de alimentação. Veja estudo sobre a importância das roças de toco.
Gestão atual da Funai tem ligação profunda com agronegócio
Como destacou a Deputada Érika Kokay (PT-DF), a história da atual gestão da Funai é de profunda ligação com os segmentos latifundiários desse país, que possuem interesses que colidem frontalmente com os direitos dos Povos Indígenas. A escolha de delegar aos setores ruralistas a missão de realizar a defesa estatal dos Povos e Terras Indígenas segue, portanto, a própria lógica da antipolítica adotada pelo governo Bolsonaro em outras pastas.
“O governo não tem demonstrado qualquer tipo de comprometimento com os territórios indígenas, aliás, vossa senhoria vem de uma história de muita ligação com o setor do agronegócio, com os latifundiários desse país, aqueles que o representam e que representam interesses que muitas vezes colidem com a Constituição e os direitos dos Povos Indígenas, e são interesses muitas vezes de quem acha que pode fincar as estacas dos seus currais na alma desse país onde estão os territórios indígenas fundamentais para a manutenção do que representa o povo brasileiro”, enfatizou.
Apoie a luta indígena
Povos de todas as regiões do Brasil irão à capital federal para acompanhar o julgamento do STF que pode pôr fim à tese do “marco temporal”, com início no dia 25 de agosto.
A APIB realiza campanha de arrecadação para o Acampamento Luta pela Vida, que acontece em Brasília, de 22 a 28 de agosto. Também é possível apoiar o movimento indígena participando das mobilizações e vaquinhas virtuais das delegações locais e regionais que se deslocarão a Brasília a partir da próxima semana.
Edição: Flávia Quirino