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A Cidade é Nossa

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Organização de horta comunitária em Santa Maria - Família Hip Hop
Uma horta comunitária cria sociabilidade e troca de experiências

Quando uma comunidade se organiza e inicia uma ação simples como o cultivo de hortaliças dentro de um espaço público talvez poucos percebam a quantidade de frentes políticas e de trabalho que são mobilizadas, o tamanho e proporção de seu impacto. 

Uma horta comunitária cria sociabilidade e troca de experiências; requer o cuidado com os resíduos orgânicos para produção de adubos por meio de composteiras; melhora o tratamento do lixo reciclável; fortalece vínculos; impacta na saúde mental e física; pode gerar trabalho e renda, movimentando a economia local, sem falar na possibilidade de formação política e de conscientização sobre o potencial da cidade, que está muito além da moradia. Essa é parte das aprendizagens de um pequeno grupo que se uniu em Santa Maria para organizar uma grande Horta Comunitária.

Hoje, após 5 meses do projeto iniciado pela parceria entre o Espaço Cultural Moinho de Vento/Família Hip Hop e o CAPS da Flor de Lótus, começamos a ver com clareza a extensão de um trabalho fincado na educação e na organização popular. 

O diálogo que deu o pontapé inicial desta parceria levou em consideração os elementos que perpassavam os objetivos principais de cada instituição: o empoderamento da comunidade, a reinserção social, a geração de renda, a educação política, o fortalecimento de vínculos, a busca por qualidade de vida, a saúde e a valorização humana. 

A ideia era envolver pessoas, assistidas pelos CAPS ou não, pessoas da cidade, no cultivo e cuidado da horta, criando um espaço de interação social e cultural capaz de propiciar a formação e o fortalecimento buscados, além da ocupação e apropriação do território.  


Atividade entre o Espaço Cultural Moinho de Vento/Família Hip Hop e o CAPS da Flor de Lótus. / Família Hip Hop

Na medida em que o grupo envolvido ia se consolidando e os encontros acontecendo, foi possível estabelecer debates que levantaram questionamentos sobre a atual conjuntura política brasileira. Na periferia, a crise não é um discurso, mas algo sentido no cotidiano, com desemprego, subemprego e fome real. O grupo pôde dialogar sobre os problemas enfrentados de forma crítica e guiados por sentidos criados no fazer coletivo da horta: coletividade, comunitarismo, solidariedade. 

Os vínculos de afeto construídos no cotidiano de trabalho deram abertura e confiança para a troca de ideias, percebendo os equívocos de certa forma ingênuos na percepção de mundo, desconstruindo preconceitos e mobilizando a base por meio do fazer prático, da ação política.

Todo potencial da cidade, do território, quando apropriado pela população é percebido na medida em que a cada dia mais pessoas se aproximam do projeto e buscam contribuir à sua maneira. 

A comunidade em volta participa do cuidado e da proteção do espaço e vem passando por um processo de reeducação, no qual a compreensão do uso do espaço público é transformada e vemos um grande comprometimento com a compostagem e tratamento dos resíduos orgânicos. 

A memória afetiva vinculada à terra também vem sendo aflorada. Muitos falam do passado no campo e das experiências com o cultivo. São falas de valorização do trabalho no campo, algo urgente no contexto atual, mas também sobre a destruição da agricultura familiar, do fortalecimento do agronegócio, ou seja, da produção da fome.

A partir dessa consciência, que emerge coletivamente no cotidiano do projeto, tem sido possível dialogar sobre questões primordiais: a compreensão de que o trabalho é o que gera valor e riqueza, de que o fruto desse trabalho deve ser socializado entre o povo, mas que o sistema capitalista se apropria desse fruto, acumula nas mãos de poucos e empobrece o trabalhador, produzindo, paralelamente à riqueza , miséria, fome, e que isso é a fonte das desigualdades sociais.

 Essa consciência está tão fortalecida entre os participantes do projeto que a tentativa de apropriação por parte de parlamentares foi percebida criticamente por todos. A velha política assistencialista que busca dar migalhas em troca de votos foi rechaçada pelo grupo que vem afirmando sua capacidade de promover uma ação política organizada, comunitária e participativa de forma autônoma. O que não quer dizer que nos neguemos ao diálogo político qualificado, de igual para igual, mostrando que outro impacto foi justamente o empoderamento da comunidade. 

Em uma pequena ação na periferia, com trabalho e prática, estamos conseguindo um resultado de grande valor. Mobilização política e organização popular em torno de questões importantes: trabalho, emprego, moradia, fome, produção de alimentos, saúde, mobilidade urbana, crise, desigualdade social, ecologia, cuidado uns com outros, construção de afetos e vínculos. Aliás, vale lembrar sempre que o trabalho de base, há muito abandonado por nossas esquerdas, pressupõe justamente isso, a aproximação e a construção de vínculos de confiança e troca. É preciso haver confiança e reconhecimento para que a educação popular aconteça e as mudanças de consciência se operem nos territórios.

 Quando dizemos que a cidade é nossa, falamos sobre o “nós por nós” no sentido do fazer coletivo horizontalizado, onde as pessoas são valorizadas e participam ativamente, e não são receptáculos de uma suposta consciência maior que vem do centro. É da periferia, da base, que nasce nossa consciência de classe e, portanto, os processos de transformação social. 

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.

 

 

 

Edição: Márcia Silva