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Coluna

A crise reforça o consumo de alimentos ultraprocessados

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Mercado Central de Belo Horizonte, 2019 - Olívio José da Silva Filho
A crise trouxe consigo o medo da fome de forma mais concreta para a população mais pobre

As transformações dos hábitos alimentares no Brasil não é algo novo e tem se intensificado desde o final do século XX. Como demonstra a Avaliação Nutricional da Disponibilidade Domiciliar de Alimentos no Brasil, realizada pelo IBGE, a partir dos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018, houve um incremento da participação dos ultraprocessados e a diminuição de alimentos in natura ou minimamente processados no total de calorias consumidas nos domicílios brasileiros.

Em geral, a pesquisa identificou que, em média, a participação na composição nutricional dos alimentos in natura ou minimamente processados passou de 53,3% em 2002-2003 para 49,5% e a participação de ultraprocessados que era de 12,6% passou para 18,4%[1] na edição atual da pesquisa.

O atual sistema alimentar brasileiro é resultado de uma reestruturação produtiva iniciada na década de 70 e intensificada a partir da década de 90, na qual integra de forma estrutural a produção e o abastecimento ao capital financeiro, que passa a comandar todo este sistema.

Essa financeirização do sistema agroalimentar acarretou mudanças estruturais em toda a cadeia, algumas delas como: a produção de commodities ao invés de comida; o aumento da financeirização das terras e da natureza; a volatilidade dos preços dos alimentos a partir da especulação; os supermercados como o principal meio de abastecimento dos segmentos da alimentação, higiene, limpeza e de utilidades domésticas; a diminuição do papel de outras formas de comercialização como as feiras livres, os mercados municipais, etc.; e o aumento da disponibilidade de alimentos ultraprocessados para os consumidores.

Reestruturação produtiva

A reestruturação veio acompanhada também de mudanças nos próprios comensais. Os novos padrões de consumo alcançados fizeram com que os consumidores reequacionassem sua vida a partir dessas transformações do sistema agroalimentar e pela compressão do espaço e do tempo de uma sociedade cada vez mais urbanizada que reforça as desigualdades, ou seja, reequacionar a realização de suas necessidades do estômago e do imaginário a partir do seu posicionamento na sociedade.

Nesse sentido, houve a emergência de novas formas de consumo, o aumento na disponibilidade de alimentos - principalmente de alimentos com maior tempo de prateleira-, uma homogeneização dos produtos e a sua disponibilidade de forma contínua. Com efeito, esse sistema resultou no desaparecimento de particularidades locais dos sistemas culinários, a incorporação de traços e elementos culturais em seu circuito e também a disseminação em escala global de determinados produtos.

Essa mudança no gosto e a nova disponibilidade alimentar resultaram na diminuição do consumo de alimentos socialmente referenciados, dos alimentos in natura e minimamente processados e no aumento do consumo de ultraprocessados.

Os alimentos ultraprocessados se tornaram um campo fértil para a ampliação dos mercados das empresas multinacionais, devido à homogeneização e barateamento da sua produção, a facilidade de transporte e armazenamento e o aumento da variedade de produtos a partir de modificações mínimas em sua composição. 

Este processo resultou tanto no aumento da disponibilidade dos ultraprocessados, uma maior estabilidade dos seus preços quanto nas variações do mercado e na tendência de queda de seus preços em comparação com os alimentos in natura ou minimamente processados. De acordo com uma pesquisa publicada na Revista Public Health Nutrition, em 2026 os alimentos ultraprocessados irão se igualar aos preços dos in natura ou minimamente processados, e em 2030 serão mais baratos, R$4,34 por quilo, contra R$5,24 dos alimentos in natura ou minimamente processados.

A crise que vivemos

Com a crise sanitária e econômica atual, a tendência da substituição de alimentos in natura para ultraprocessados intensificou, processo decorrente de fatores como: a maior vulnerabilidade das famílias aos preços praticados nos supermercados; o aumento muito superior à inflação do preço dos alimentos in natura, como arroz, feijão, frutas, verduras e legumes; os alimentos com uma integração maior com a cadeia global, como os ultraprocessados, têm seu preço e sua disponibilidade menos afetadas a essas variações em comparação com os alimentos in natura e minimamente processados, devido ao volume de sua produção, a proximidade do processamento e industrialização com os centros urbanos e por suas formas de armazenamento e distribuição.

O aumento do consumo de ultraprocessados também teve relação com outros fatores para além do sistema de produção e de abastecimento. O isolamento social e a crise trouxeram o medo da possibilidade de diminuição dos padrões de consumo para os mais abastados, o que tornou os ultraprocessados um terreno fértil para a estocagem e manutenção de seu consumo afluente. 

Outro elemento importante é a satisfação das necessidades do imaginário social através da associação da comida com a ideia de conforto, aumento o consumo de alimentos ultraprocessados como chocolates, sorvetes e outros alimentos como um alento à atual conjuntura. Do outro lado, a crise trouxe consigo o medo da fome de forma mais concreta para a população mais pobre, a perda de rendimentos associada ao aumento do preço dos alimentos pode modificar de forma substancial o consumo.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) o consumo de ultraprocessados entre os brasileiros de 45 a 55 anos saltou de 9% para 16% entre 2019 e 2020;  entre os entrevistados de 18 a 55 anos, na pandemia o consumo de salgadinhos e biscoitos salgados aumentou de 30% em 2019 para 35%; margarina, maionese, ketchup e outros molhos de 50% para 54%; entre aqueles que estudaram até o ensino fundamental, o consumo de salsicha e outros embutidos saltou de  24% para 33%. Em relação a diminuição do consumo de alimentos in natura, a pesquisa constatou que nos municípios do interior passou de 68% para 62%, sendo que, no Nordeste, passou de 72% para 64%.

Como pode ser observado, trouxe novos elementos que intensificam as tendências de piora e de desigualdade  no consumo alimentar. A variação dos preços de alimentos in natura como dos tubérculos, raízes, legumes, hortaliças, verduras e frutas afetaram diretamente o consumo desses alimentos. 

Se o aumento do consumo de ultraprocessados já era uma realidade, a pandemia acelera ainda mais essa tendência. Isso significa que ela pode reforçar as desigualdades e a cacofonia alimentar, deixando em margens mais estreitas a realização do consumo e a segurança alimentar da população mais pobre.

* Olivio José da Silva Filho é gastrônomo, doutorando em Política Social pela Universidade de Brasília, militante do Levante Popular da Juventude e da Consulta Popular.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa  a linha do editorial  do jornal Brasil de Fato - DF.

Edição: Márcia Silva