“Sabemos que ele morreu, mas morreu lutando pelos nossos direitos” – Sobrinha de Galdino
Brasília: a reencenação cotidiana da colonização
“[Brasília] nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz.” – Lúcio Costa
As imaginações hegemônicas sobre Brasília podem ser facilmente aferidas desta declaração de Lúcio Costa, um de seus inventores.
O tomar posse, como se vazia e árida fosse a terra a ser ocupada pela administração pública e seus funcionários; ou ainda a alusão ao sinal da Cruz, sempre companheira nos processos de expansão do país.
Não à toa, o urbanista narra o nascimento da cidade com o tom das histórias da conquista: “no meu tempo isso aqui era tudo mato”, e o “gesto primário” de quem transforma o vazio em modernidade. Aqui, como nas outras narrativas da colonização, o apelo apara a ausência da região e para a ousadia de seus desbravadores partem da mesma necessidade: uma tentativa de apagar a multiplicidade de presenças que, ao existirem, apresentam-se como um obstáculo ao projeto de desenvolvimento que inspirou a capital.
A tentativa de expurgar essas presenças de Brasília não está apenas nos relatos do nascimento da cidade, mas é reencenada cotidianamente em suas ruas.
Da negação dos grupos indígenas que por aqui viviam ao impedimento da permanência dos trabalhadores (negros e, também, indígenas) que a construíram em suas áreas nobres, por vezes o expurgo tem ares corriqueiros, como o ônibus que deixa de vir ao Plano depois de certa hora, mostrando que há pessoas que só devem frequentar a região para trabalhar. Em outras, toma ares trágicos e, por isso mesmo, emblemáticos. Entre os grandes atos que refazem o projeto original de Brasília está o assassinato, em abril de 1997, da liderança Pataxó Hã Hã Hãe Galdino Jesus dos Santos.
Ao serem confrontados com suas ações, os assassinos Max Alves, Antonio Vilanova, Tomás de Almeida, Eron Oliveira e Gutemberg Junior declararam achar que não se tratava de um indígena, mas de um mendigo.
Se, por um lado, revelam seu desprezo por essa outra presença, também reafirmam a cidade em outra direção: quem poderia imaginar que haveria um índio em Brasília?
Como afirma o antropólogo Rafael Moreira sobre o caso: “a figura do indígena é impensável de habitar a modernidade do Plano Piloto.”
A retomada:
Se há uma Brasília que reencena todo dia a colonização, não o faz sem resistência.
Nas últimas três semanas, as ruas brancas da capital federal foram tomadas pelas cores múltiplas da mobilização indígena.
Inicialmente, o jenipapo e urucum tomaram o barro vermelho ao lado do (inabitado) Teatro Nacional, território indígena há 17 anos, quando ocorreu o primeiro Acampamento Terra Livre na cidade. Posteriormente, a “Luta pela Vida” mudou-se para frente da Funarte, até se transformar também na “Segunda Marcha das Mulheres Indígenas”.
Os/as milhares de indígenas estiveram em Brasília para se contrapor ao projeto verde-amarelo que tenta por todos os meios negar sua existência. Por um lado, o julgamento do “marco temporal”, que tenta impedir o reconhecimento de suas terras, esvaziando o sentido do artigo 231 da Constituição Federal.
Por outro, os diversos projetos anti-indígenas em curso no Congresso Nacional com o mesmo objetivo, como o caso do PL 490 e do PL191. Tudo isso coordenado pelo Governo Bolsonaro que, como temos argumentado no Inesc, aposta no estrangulamento orçamentário da Funai e no redirecionamento do órgão para ações de caráter assimilacionista.
Esse mesmo projeto verde-amarelo, corporificado na ocupação golpista da Esplanada ocorrida a partir do dia 6/9, acabou impedindo que a Marcha das Mulheres Indígenas ocorresse conforme o planejado.
Os patriotas, no entanto, pouco entendem de retomadas – o desvio da rota acabou resultando numa contracolonização.
A W3 Sul foi desenhada não pelo lápis do arquiteto, mas pelos pés das cinco mil mulheres indígenas em marcha.
O silêncio dos edifícios residenciais, interrompido pelos cantos dos 172 povos presentes.
Em tempos em que um dos assassinos foi nomeado para cargo de confiança da Polícia Federal pelo presidente da república, o ritual macabro de expurgo e morte de Galdino foi desfeito pelos poderes de cura das mulheres indígenas. No lugar dele, quem queimou foi o projeto genocida de Bolsonaro, assim como o projeto embranquecedor de Brasília.
Como quem diz que toda a terra que pisamos por aqui é também permeada pelas lutas dos povos originários, a luta das mulheres e homens indígenas reinventou Brasília.
Vivemos, na prática, um contra-marco temporal: estavam aqui, estão aqui e por aqui seguirão. Para nós, habitantes do Distrito Federal, fica a inspiração de pensar, lutar e viver a cidade também como prática contracolonial.
*Leila Saraiva é doutoranda em Antropologia na Universidade de Brasília e assessora política do Inesc.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
Edição: Márcia Silva