A diarista Cristina de Sousa, moradora do Itapoã, uma das regiões mais pobres do Distrito Federal, ficou praticamente sem casas pra limpar desde a eclosão da pandemia de covid-19, em 2020. Por sorte, alguns de seus clientes mantiveram o pagamento das diárias e ela conseguiu atravessar esse período sem passar por uma situação mais drástica de perda total de renda.
Mãe solo, ela mora com os dois filhos, um de 23 anos, outro de 14, em uma casa de poucos cômodos cujo aluguel é de R$ 700. Como ela atualmente não recebe nenhum tipo de auxílio governamental, como o Bolsa Família e outros programas, toda sua renda depende do seu trabalho como doméstica em diferentes domicílios.
"Eu acho que tá difícil para a grande maioria do povo. Aqui em casa, eu agradeço de conseguir comer pelo menos o arroz com feijão", relata. Apesar de não viver numa situação mais severa de insegurança alimentar, Cristina conta que o consumo de carne foi praticamente zerado, e ela foi deixando de comprar outros itens essenciais na dieta de qualquer pessoa, como verduras, legumes e frutas por por causa do preço alto.
"Frutas foi um item que nunca mais eu comprei, como maçã, mamão, que meus filhos gostam, mas tivemos que dar uma parada", lamenta.
Brasília registra o maior aumento da cesta básica de alimentos entre as capitais. De setembro de 2020 a setembro de 2021, no acumulado dos últimos 12 meses, o percentual de aumento do produto na capital do país já soma de 38,56%, disparado o maior valor entre 17 capitais pesquisadas pelo Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese).
Atualmente, o valor médio da cesta de alimentos na capital do país está em R$ 617,65, o sétimo maior valor entre as capitais pesquisadas.
Dia Internacional da Soberania Alimentar
Na data em que se celebra o Dia Mundial da Soberania Alimentar, neste sábado (16), o Brasil tem pouco a comemorar e muito a denunciar. Já são mais de 116 milhões de pessoas em situação insegurança alimentar, o que é mais da metade da população.
Desse total, 43,4 milhões de pessoas não tinham comida o suficiente e 19 milhões estavam efetivamente passando fome, segundo dados do "Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil", elaborado pela Rede PENSSAN no início deste ano.
A extrema pobreza quase triplicou, passando de 4,5% da população para 12,8%. Com números tão alarmantes, o país, que tinha saído do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) voltou retornou à esta triste posição.
Sobre o DF, um estudo recente do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV) mostrou que o percentual famílias que vivem na pobreza passou de 12,9% para 20,8% da população. Já a extrema pobreza passou de 3,2% para 7,3%. Foi o pior desempenho entre todas as capitais do país.
Somados, esses dois grupos formam um contingente de mais de 860 mil pessoas em situação de vulnerabilidade social na capital do país. O Banco Mundial considera que alguém está em situação de pobreza quando tem uma renda de US$ 5,50 por dia (cerca de R$ 28,60). Na extrema pobreza, a renda é de US$ 1,90 por dia (R$ 10,45).
Não há dados atualizados específicos sobre a fome na capital do país, mas outro estudo do IBGE, realizado ainda antes da pandemia e divulgado no ano passado, mostrou que que 319 mil domicílios do DF estão em situação de insegurança alimentar. Houve um aumento de mais 250% desde 2013.
A catadora de material reciclável Ivânia Souza Santos, de 38 anos, mora com o marido e três filhos em uma quitenete na Vila Planalto. No primeiro semestre, ela foi expulsa, junto com outras 24 famílias, de uma ocupação nas imediações do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), que fica a poucos quilômetros da zona central de Brasília.
Em setembro, ela já havia relatado seu drama em um especial publicado Brasil de Fato sobre a fome. Agora, em nova conversa com a reportagem, ela teme ter que voltas às ruas com o fim do auxílio aluguel. "Só vou receber até dezembro, depois disso não temos pra onde ir".
Ivânia e família contam apenas com o Bolsa Família. Ela está com um problema de saúde na coluna que a impede de catar e vender material reciclável. Por causa disso, a situação de insegurança alimentar é severa. "Tem dias que só temos mesmo arroz pra comer".
Ações solidárias
Na noite da última quinta-feira (14), o Movimento dos Trabalhadores Rural Sem Terra (MST) distribuiu 400 marmitas para pessoas em situação de rua em Brasília.
A ação se somou às várias outras que estão sendo realizadas no Brasil pela Jornada Nacional Movimento Sem Terra Cultivando Solidariedade, cujo objetivo é sensibilizar a população para o tema do combate à fome e pela defesa da Soberania Alimentar.
"No Brasil temos 20 milhões de pessoas que passam fome e cerca de 125 milhões em situação de insegurança alimentar e nutricional. Através dessas ações queremos demonstrar nossa indignação contra esse governo genocida e anunciar o papel da Reforma Agrária Popular no combater a fome", diz o MST em postagem nas redes sociais.
O colunista do Brasil de Fato Olívio José da Silva Filho, que é gastrônomo e doutorando em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB), avalia que a situação da fome no Brasil tem relação direta com o modelo econômico em vigor e com o desmonte das políticas públicas de alimentação.
"O agronegócio tem batido recordes de produção agrícola, enquanto a fome também bate recordes. Isso evidencia como as necessidades do capital tem colocado em xeque as necessidades humanas".
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Edição: Márcia Silva