Não cabe ao CFM o proselitismo de posicionamentos, por exemplo, político-partidários.
Neste 18 de outubro, data em que se comemora o Dia do Médico, nós da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, Núcleo Distrito Federal, iniciamos nossa coluna no Brasil de Fato DF.
Em três textos vamos falar sobre a necessidade urgente de resgatar o Conselho Federal de Medicina aos próprios médicos e para a democracia do país.
Neste primeiro fazemos um resgate histórico sobre a colaboração de conselhos de Medicina com a Ditadura, em paralelo a liberação atual da prática de tratamento precoce contra a Covid-19, seguindo alinhamento político com Governo Bolsonaro.
No segundo texto, vamos falar sobre os caminhos do Conselho Federal de Medicina, da renovação das entidades médicas em prol da democracia e do direito à saúde, nos anos de 1980, e a reviravolta política com um pacto conservador no movimento médico no início dos anos 2000. Além de tratar da adesão do movimento médico ao reacionarismo após 2013, participando abertamente da construção da máquina política que formou ou apoio o bolsonarismo.
No último texto desta série, vamos abordar a "Fragmentação e desorganização do pacto conservador e a possibilidade de um novo ciclo de mudanças e resgate do CFM ao ambiente democrático".
O Flerte entre conselhos de medicina e governos autoritários
Em 1979, dois psiquiatras mineiros, Francisco Paes Barreto e Antônio Soares Simone têm sindicância aberta pelo Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG), inclusive com sugestões durante o processo de cassação de seus registros profissionais, por oferecerem denúncias sobre ocultamento e tráficos de corpos relacionados ao Hospital Colônia, em Barbacena, Minas Gerais.
Os problemas com essa instituição surgiram desde a década de 1930, mas ganharam uma dimensão de escala e mercantil durante o período dos governos Médici e Geisel na Ditadura Militar.
Tais corpos eram direcionados inclusive para os laboratórios de anatomia de faculdades de Medicina de Minas Gerais. “Nem todos os internos possuíam problemas mentais. Opositores políticos da ditadura, negros, homossexuais, mendigos e crianças passaram a dividir a prisão com homens e mulheres que já eram abandonados nus dentro do Hospital Colônia” – denuncia a jornalista Daniela Arbex, em seu impactante livro o Holocaustro Brasileiro, de 2013, que estima que cerca de 60 mil pessoas foram mortas nessa “fábrica de cadáveres”.
A denúncia desses profissionais teve grande repercussão internacional na época, e atingia sem dúvida as arbitrariedades do regime autoritário do país naquele momento, que era conivente com esse tipo de funcionamento de hospitais psiquiátricos. O Conselho de Medicina, assim, tomou parte de forma desfavorável aos médicos, atuando em clara colaboração com o regime autoritário do momento.
Mais de 40 anos depois, em 2020, o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Luiz Ribeiro, em evento do Conselho Regional de Medicina de Goiás, realizado no dia 7 de maio daquele ano, reforçou que o tratamento precoce, especialmente com cloroquina e hidroxicloroquina, tem liberação de uso, mesmo sem evidências científicas de eficácia, em contexto já claro de fator de confusão entre a prioridade das medidas de saúde coletiva frente à doença, e o conflito com a disseminação inclusive de “tratamentos profiláticos para COVID-19”, que tiveram como consequência o retardo no acompanhamento clínico de milhares de pacientes, com repercussões em mortes.
Em 26 de junho de 2020, o vice-presidente do Conselho Federal de Medicina, Emmanuel Fortes, em reunião do chamado “gabinete paralelo” ligado à Presidência da República, deixa explícito que para o Conselho Federal de Medicina há maior “risco” de médicos que não prescrevem tratamento precoce, de serem instaladas medidas de sindicância para apuração de infrações éticas.
As falas do presidente do CFM, defendendo o atual governo, como a postura do vice-presidente, participando da reunião de um “gabinete paralelo” e expressando suas posições, indicam o uso do conselho profissional em colaboracionismo com as arbitrariedades do governo atual e sua autoritária posição já conhecida.
Pandemia no Brasil
Num contexto de mais de 600 mil vítimas por COVID-19 no Brasil, estudos publicados em 15 de outubro de 2021 pelo Imperial College de Londres (instituição universitária de excelência internacional) diz que cerca de 329 mil mortes teriam sido evitáveis no Brasil, caso a condução pelo Governo Federal tivesse sido na mesma linha de combate e controle da pandemia, como foi feito em Belo Horizonte.
Em Belo Horizonte, por exemplo, defesa de Kit-COVID-19, tratamento precoce, relativização de uso de máscaras, boicote às medidas de distanciamento social não foram medidas usuais pelas autoridades públicas. Tal estudo não engloba que o número de mortes seria ainda menor, caso uma política nacional de vacinação mais ágil e estruturada tivesse previamente apoiado os gestores municipais e estaduais no combate à pandemia.
O Conselho Federal de Medicina não é uma associação privada, e nem um sindicato profissional. É uma autarquia pública corporativa para acompanhamento e fiscalização do exercício ético profissional da Medicina. Prevista em lei e submetida ao ordenamento das instituições do Estado. Não cabe a ele proselitismo de posicionamentos, por exemplo, político-partidários.
Tais fatos históricos mostram que a colaboração de entidades médicas, governantes autoritários e desvios éticos graves de seus dirigentes, não são novidade em nossa história. E a negligência, a imprudência institucional e de responsabilidade de seus dirigentes se somam às mortes, que poderiam ser evitadas.
A segunda parte deste texto, será publicada no dia 23 de outubro e tem como tema "A construção da democracia no país e da saúde como um direito de todas as pessoas".
*A Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares é uma inciativa de profissionais da Saúde e movimentos progressistas para ser um contraponto à ofensiva conservadora da classe médica, com o objetivo de construir um projeto popular para o país.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.
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Edição: Flávia Quirino