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Coluna

Os 500 anos da Via Dolorosa de Lutero

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Lutero em 1529 - Obra: Lucas Cranach, o Velho
A lição principal de Lutero em Worms é a defesa da liberdade de expressão.

Por Clovis Horst Lindner

O ano de 1521 tem uma importância ainda maior que 1517 no que tange os 500 anos da Reforma. Trata-se da eletrizante passagem de Martim Lutero pelo tribunal montado dentro da Dieta de Worms, para cortar pela raiz o pequeno arbusto que vicejava em Wittenberg a partir das 95 Teses.

Após muitos outros escritos e com base numa exitosa estratégia de Marketing construída sobre os mais modernos instrumentos de comunicação da época, as ideias de Lutero atingiram Roma em cheio e provocaram reações iradas do Papa Leão X e do Imperador Carlos V.

Em pouco mais de quatro anos, as ideias reformatórias granjearam uma legião de fãs, entre a nobreza inclusive; mas também muitos inimigos. Assim, Worms seria o palco definitivo para confiscar de Lutero o céu e a terra. O céu lhe seria negado pela Igreja e a terra lhe seria tomada pelo Império.

O que se passava em Worms de tão temível para a Reforma? A cidade hospedava uma reunião de políticos e poderosos maior do que a população local, de dez mil habitantes, reunida de 28 de janeiro a 26 de maio de 1521. Aliás, uma excelente oportunidade de negócios para comerciantes, feirantes e manufatureiros locais. Já naquela época, a igreja estava metida nesta reunião até o pescoço. 

 A Dieta de Worms era o canal para sufocar o movimento. Calma, não se trata de uma dieta alimentar – embora à época até Shakespeare tenha se referido pejorativamente ao termo “diet”, em Hamlet.

Dieta era o termo usado para a Assembleia Imperial do Sacro Império Romano Germânico, que reunia as principais autoridades civis, militares, eclesiásticas, os proprietários de terras e a nobreza do Império em que o Sol nunca se punha.

A pauta “Lutero” entrou muito a contragosto na Assembleia. Carlos V, o homem mais poderoso da Europa, era um adolescente de 19 anos. Seus interesses estavam muito mais em firmar seus poderes num Império em litígio.

Foi a insuportável insistência do núncio apostólico Aleandro que levou ao tribunal contra Lutero. Mas também pesou a aliança com o Príncipe Frederico III da Saxônia, protetor de Lutero e de Carlos V como novo imperador, e a quem convinha agradar para manter o poder sobre a Alemanha.

Frederico, um idoso senhor com vasta experiência política, defendia que seu professor favorito na Universidade de Wittenberg não fosse proscrito sem antes ser ouvido num tribunal diante da Igreja e do Império.

 Para Carlos V, o caso podia ser religioso, mas Lutero tinha um enorme peso diplomático e político. Assim, numa espécie de “condução coercitiva”, ele mandou uma força-tarefa buscar Lutero em Wittenberg para ser julgado. Ao longo de todo o trajeto entre Wittenberg e Worms – hoje uma espécie de caminho de São Tiago de Compostela luterano – uma legião de fãs tornou o jovem Doutor Martim um fenômeno popular.

 Ao chegar, as ruas e os balcões das sacadas em Worms foram se enchendo, a ponto de reunir duas mil pessoas em torno da carruagem que levava Martim até a hospedaria. As gráficas estavam a mil.

O próprio Aleandro disse que todo dia parecia chover escritos de Lutero em alemão e latim sobre a cidade: “Até parece que não se vende outra coisa por aqui, além de escritos de Lutero”. Os livreiros e gráficos esfregavam as mãos pelos lucros. A cidade e a Dieta pararam por causa do monge.

Uma vez em Worms, Lutero foi espremido ao longo de dez dias, de 16 a 26 de abril de 1521, passando por uma verdadeira “via dolorosa”. Primeiro, num encontro reservado na sala do trono, montada na Arquidiocese de Worms, Carlos V tentou intimidar Lutero sem muito alarde, para que se retratasse e negasse seus escritos. 

Não haveria discursos, nem respostas espertinhas. Tudo o que lhe seria permitido, era responder sim ou não às perguntas que lhe faziam. Depois, foi diante da grande assembleia.

Nesta, Lutero preparou um longo e impressionante discurso de defesa, cujas frases famosas ecoam pelos livros de história e chacoalharam até quem o queria num cadafalso: “A não ser que eu seja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pela razão clara – pois, não confio nem no papa nem em concílios por si sós, pois é bem sabido que eles frequentemente erraram e se contradisseram – sou obrigado, pelas Escrituras que citei e por minha consciência, que é prisioneira da palavra de Deus. 

Não posso e não irei renegar nada! Pois, não é seguro e nem correto agir contra a consciência. Que Deus me ajude. Amém.”

Segundo a tradição, Lutero teria declarado também: “Aqui estou e não posso diferente!”. Só que esta declaração não consta nos autos da Dieta. 

Entre aplausos de muitos e a irritação de Aleandro e da Igreja, Lutero saiu da plenária sem veredito. Durante os dias seguintes, uma comissão de notáveis ainda tentou persuadir Lutero a renegar seus escritos, mas nada conseguiu. 

Após dez dias, o deixaram ir. Ele foi escoltado pela mesma força-tarefa de volta para casa. Só que um “sequestro” havia sido combinado, para colocar Lutero em segurança. 

No meio do caminho, não antes de dispensar a escolta e os amigos que acompanhavam o grupo, Lutero foi violentamente arrancado da carruagem e conduzido ao Castelo de Wartburg, em Eisenach, onde chegou no meio da noite, já como “cavaleiro Jorge”.

 Durante o restante da Dieta, Aleandro insistiu junto a Carlos V por uma condenação e chegou a redigir de próprio punho o que viria a ser o Édito de Worms, um longo e detalhado documento que caça os direitos políticos de Lutero, tornando-o um proscrito. 

O documento foi assinado com o selo do Imperador no último dia da Dieta, em 21 de maio de 1521. Lutero já estava em segurança na Wartburg, onde passou um verão bastante tranquilo. Mas, durante o outono, ele começou a traduzir o Novo Testamento, tarefa que realizou em apenas onze semanas. Mas esta já é uma outra história.

O Édito de Worms – que nunca entrou em vigor no território alemão – declarava criminosas todas as pessoas que, “por atos ou palavras defendessem, sustentassem ou favorecessem o que foi dito por Martim Lutero”. 

Determinou, ainda, que Lutero fosse preso e levado até o imperador para ser punido como herege, estipulando uma generosa recompensa aos que ajudassem neste intento. Na prática, Lutero era um proscrito. Qualquer cidadão que o encontrasse podia prendê-lo ou até matá-lo.

O documento determinava o banimento imperial de Martim Lutero e de qualquer de seus seguidores. O banimento eclesiástico veio com a bula papal que o declarava herege e excomungado da igreja católica.

O banimento imperial era a sanção do Kaiser, com a aprovação dos tribunais imperiais, que declarava o condenado sem direitos civis após desobediência à lei e cuja vigência se estendia por todo o território do Sacro Império Romano Germânico. 

Como desde 1220 as declarações de proscrição da igreja e do império andavam juntas, Lutero era oficialmente um excomungado e um pária, ou seja, um cidadão sem Igreja e sem Pátria; sem lugar no céu ou na terra.

O julgamento de Worms mostra que a nova Teologia de Lutero foi alvo de dura perseguição pelo Estado e pela Igreja. Foi um tempo duro para quem ousava pensar fora da caixinha. Muitos enfrentaram a masmorra ou foram mortos por causa de sua fé. 

Por outro lado, foi por conta de Worms que a Reforma protestante prosperou na Alemanha. Os dez dias de Lutero em Worms foram a virada do jogo da Reforma.

Se Carlos V não estivesse tão preocupado com o seu umbigo imperial, ele provavelmente teria virado as costas aos príncipes alemães e Lutero teria terminado ali, naquela Dieta, provavelmente, numa fogueira junto com seus livros. 

Por isso, é inaceitável que hoje, em nome de uma visão teológica que ganhou o mundo com tanta luta e determinação, se tente reeditar Worms para com outras ideias teológicas inovadoras. É, no mínimo, enquadrar a ação do Espírito Santo. A lição principal de Lutero em Worms é a defesa da liberdade de expressão. 

Lutero teve um corajoso ato de desobediência civil neste processo. Simultaneamente, o que hoje consideramos ortodoxia protestante, era heresia em Worms. 

Outrora, os hereges foram nossos antepassados. Não nos tornemos também algozes de pretensas heresias.

Texto: P. Clovis Horst Lindner, pastor da IECLB, diretor de Redação do jornal O Caminho

*Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), nasceu em 1982, em Porto Alegre. Atualmente sua sede encontra-se no DF.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa  a linha do editorial  do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Márcia Silva