O lançamento do Programa Mais Médicos, em 2013, foi a gota d’água do esgarçamento das relações.
Retomando o debate que iniciamos no último texto, neste segundo vamos abordar os caminhos do Conselho Federal de Medicina, da renovação das entidades médicas em prol da democracia e do direito à saúde, nos anos de 1980, e a reviravolta política com um pacto conservador no movimento médico no início dos anos 2000.
Além disso, tratamos da adesão do movimento médico ao reacionarismo após 2013, participando abertamente da construção da máquina política que formou ou apoio o bolsonarismo.
Em defesa da construção da democracia no país e da saúde como um direito de todos
Apesar desses capítulos do passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) já teve uma história de apoio à construção das instituições democráticas no país, de defesa da cidadania e inclusive de contribuição às conquistas em prol do direito à saúde e dignidade humana.
Atuação semelhante ao padrão histórico de outras importantes entidades de classe, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que desde o final dos anos de 1970 se mostra um bastidão na construção e defesa da democracia.
A partir da Greve Nacional dos Médicos Residentes, em 1976, diga-se de passagem, a primeira do ciclo do enfrentamento que se iniciou na ditadura no final daquela década, surge o Movimento de Renovação Médica (REME). Tal iniciativa vinha no esteio do chamado movimento pela democratização da saúde do país, o Movimento Pela Reforma Sanitária Brasileira (MRSB), que deu origem à criação em 1988 do Sistema Único de Saúde.
Já na segunda metade dos anos de 1980, o CFM tinha renovado sua direção e tinha uma orientação mais progressista, e uma agenda para contribuir com o futuro de um país onde a saúde se tornou um direito de todos e um dever do estado.
Em 1991, dentro desse espírito democrático, inaugurou a Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM), que reunia associações de ensino, movimento estudantil, representações sindicais, de gestores de saúde, que propunha uma formação de médicos em quantidade e qualidade conforme as necessidades sociais de saúde do país.
Pacto Conservador
Contudo, no final dos anos de 1990, a reorganização de setores conservadores no movimento médico e as divisões nos setores progressistas, que vinham do movimento de Renovação Médica, formaram uma aliança utilitária entre gente que já tinha atuado à esquerda, que migraram para o pragmatismo corporativo, e o pior do reacionarismo oligárquico dos estados, formando um grupo chamado Causa Médica, que ascende à presidência do CFM no ano de 1999.
Esse grupo propunha “o retorno do CFM aos próprios médicos” e não mais uma conexão com as demandas gerais da sociedade. A vitória desse grupo, em 1999, representou um apequenamento do CFM frente à defesa da saúde como um direito no país. Apesar dos discursos pró-SUS, uma das primeiras medidas desse grupo foi o esvaziamento e extinção da CINAEM, o que se concretizou em 2002.
Para alcançar seus objetivos, construiu uma aliança conservadora com a Associação Médica Brasileira (AMB), responsável pelas entidades científicas da categoria e propôs uma aliança pragmática com o movimento sindical médico, ajudando na reunificação da Federação Nacional dos Médicos (FENAM), que estava dividida na disputa polarizada internamente entre setores do PT e do PCdoB, e os aliados de cada um.
O pacto conservador foi baseado, em 2001, na elaboração de um Projeto de Lei denominado Lei do Ato Médico. Essa proposta era uma espécie de “cheque em branco”, onde caberia ao Conselho Federal de Medicina definir o que seria considerado diagnóstico e tratamento em saúde, ou seja, o que era privativo de exercício da Medicina em nosso país.
Tal proposta, foi, fragorosamente, derrotada na XII Conferência Nacional de Saúde, em 2003. Uma articulação sindical de outras categoriais profissionais da saúde, do movimento popular e uma agitação fortemente realizada pelo movimento estudantil de Medicina, a partir da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), rechaçou a proposta em plenário, e teve a anuência do Ministério da Saúde do nascente Governo Lula.
Após essa derrota, nunca mais essa pauta conseguiu ser recomposta, e serviu de agitação não só conservadora, mas reacionária dentro da categoria médica. Financiada com recursos das anuidades dos próprios médicos, utilizando o aparato financeiro e de comunicação do CFM.
Do Conservadorismo ao Reacionarismo Médico
Os alvos comuns também se tornaram certos – o Governo Lula e após o Governo Dilma. Houve também durante praticamente uma década forte perseguição à DENEM, financiando entidades paralelas para desmonte e enfraquecimento da entidade histórica de representação dos estudantes de Medicina.
Além disso, um claro processo de interferência em 2004 nas eleições da Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR), escandalosa, que envolveu roubo de atas, e posterior formação de um congresso paralelo para eleição de uma diretoria fantoche, e a manutenção de sucessivas diretorias de lá para cá.
O lançamento do Programa Mais Médicos, em 2013, foi a gota d’água do esgarçamento das relações que já vinham há uma década.
Apesar da visibilidade dos ataques à vinda de médicos estrangeiros para atuar no país, a maior preocupação das entidades médicas era a ampliação do aparato de formação de médicos, e a universalização de vagas em programas de residência médica.
Sendo que, a regulação da oferta para formação de diversas especialidades médicas (grande filão de mercado) seria realizada pelo Estado conforme as necessidades sociais, e, não meramente pela autorregulação corporativa (cada especialidade médica controlando, na prática, com suas regras internas essa oferta de quantos especialistas médicos formar por ano no país).
Apesar dos indicadores internacionais mostrarem que o Brasil montou ao longo de três décadas um modelo caro de formação médica, com muitas escolas de Medicina, mas com poucas vagas por escola e mensalidades caríssimas ( atualmente, 70% das vagas de cursos de graduação em Medicina estão no setor privado), o discurso desse grupo nas entidades médicas foi sempre de que no Brasil já se tem médicos suficientes, e que o problema é somente de distribuição, o que foi provado que não era verdade pelo Programa Mais Médicos.
Há necessidade de expansão na quantidade médicas e médicos em nosso país, buscando um perfil mais generalista e socialmente referenciado para a atuação profissional.
O Governo Dilma buscou mediar politicamente a situação junto às entidades médicas, contribuindo com a aprovação e sanção da Lei 12.842, de 10 de julho de 2013, que dispõe sobre o exercício da Medicina.
A proposta obviamente não foi o cheque em branco requerido em 2001 em plena agitação conservadora para a Lei do Ato Médico, o que não saciou os ânimos, e assim as chantagens ao Governo Dilma e tentativa de sabotagem do Programa Mais Médicos continuaram.
O Governo Dilma cedeu, e negociou com as entidades médicas elementos da Lei 12.871, de 22 de outubro de 2013 (Lei do Programa Mais Médicos). Em desdobramento, já no agravo da crise política, viabilizou a publicação do Decreto 8.516, de 10 de setembro de 2015, que permitiu a oficialização do processo de certificação de titulação de médicos especialistas por uma entidade privada, a Associação Médica Brasileira, agora com respaldo legal geral.
Mas nada aplacava os ânimos desse movimento descontrolado de reação.
Adesão ao Fascismo
Para dominar a situação, esse grupo do movimento médico dobrou a aposta, extrapolando todos os limites de uso privado de uma estrutura pública ou entidade de cunho associativo.
Ameaça de processos éticos a médicos que apoiavam o Mais Médicos, propaganda ideológica utilizando espaço institucional, escracho a médicos estrangeiros e participação da construção da máquina política que formou o apoio ao bolsonarismo.
Carros de som para atos financiados pela AMB, participação na construção de redes de robôs e fake news, militância político-partidária utilizando o peso das entidades. Participaram do Golpe Institucional de 2016 e estão desde aí seguindo a agenda do fascismo.
Dentro do espólio político, propuseram a reformulação da Lei do Programa Mais Médicos e a criação em substituição do Programa Médicos pelo Brasil, aprovada pela Lei 13.958, de 18 de dezembro de 2019.
Nesse ato, além de terem retirado da lei anterior o quesito que vinculava à expansão de vagas de graduação em Medicina à expansão e universalização de vagas para realização de especialização via residência médica (essa toda pública ainda nos dias de hoje), ludibriaram os médicos brasileiros de que o Governo Bolsonaro havia criado uma “carreira federal para médicos em lei”.
Na verdade, o que foi criado foi um Serviço Social Autônomo (SSA), uma espécie de grande entidade nacional para contratação terceirizada de profissionais médicos, sem nenhuma das garantias habituais do serviço público e nem das chamadas carreiras de Estado. Esse SSA, denominada ADAPS (Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde) não entrou ainda em funcionamento no momento, e deve ser objeto de preocupação por sua tendência privatizante da política de saúde. E, possivelmente será disparada com fins eleitoreiros no ano de 2022.
No último texto desta série sobre Resgatar o Conselho Federal de Medicina, vamos falar sobre a “Fragmentação e desorganização do pacto conservador e início de renovação nas entidades médicas”.
*A Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares é uma inciativa de profissionais da Saúde e movimentos progressistas para ser um contraponto à ofensiva conservadora da classe médica, com o objetivo de construir um projeto popular para o país.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.
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Edição: Márcia Silva