Uma postura mais definida, menos negligente, do CFM poderia ter contribuído para salvar muitas vida
Neste último texto da série em que tratamos sobre a necessidade urgente de resgatar o Conselho Federal de Medicina aos próprios médicos e para a democracia do país, falamos sobre os sinais de desgaste do grupo conservador que hoje está à frente do Conselho Federal de Medicina, após mais de 20 anos no poder.
Destacamos ainda a necessidade de apuração das denúncias apontadas na CPI da Covid-19 contra a atual diretoria da entidade.
Fragmentação e desorganização do pacto conservador e início de renovação nas entidades médicas
Após 22 anos de confrontação de entidades médicas com setores publicistas em relação ao destino da saúde do país, e as altas apostas feitas, contribuindo abertamente com grupos neofascistas, mostram-se sinais de desgaste desse grupo conservador, que começou como Causa Médica, e hoje em dia não se sabe mais nem o que é:
1. Seus apoiadores no movimento sindical perderam espaço. Com o avanço das medidas de fragilização da legislação trabalhista e da Justiça do Trabalho nos governos Temer e Bolsonaro; com a pejotização da força de trabalho de médicas e médicos, e fragmentação do trabalho, os sindicatos perderam importância, e as negociações de categoria foram, em grande parte, para a esfera individual.
Poucos lugares com uma estrutura de funcionalismo público, ou histórico de entidades sindicais, como as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília mantém sindicatos com alguma capacidade de pressão e mobilização;
2. No uso de entidades associativas como sucursal político-partidária, estourou escândalo mostrando anos sucessivos de corrupção interna com uso de recursos da Associação Médica Brasileira (AMB). Em vez de se dedicar como prioridade às demandas de natureza técnico-científica da categoria, a AMB adotou postura de pleno adesismo ao Governo Bolsonaro e viu contradições enormes se instalarem.
Mas a partir de 2020, diversas de suas entidades associadas foram porta-vozes contra os absurdos das medidas sanitárias, do lançamento de protocolos sem nenhuma validade científica feita pelo bolsonarismo. Essas sociedades científicas encontraram resistência interna da própria AMB para aquilo que é sua função elementar: a defesa da ciência.
Esses escândalos levaram à primeira derrota dessas forças reacionárias, que hoje não mais ocupam a diretoria da Associação Médica Brasileira, e assim desbaratou-se a aliança de duas décadas CFM-AMB, vital para manutenção de hegemonia no movimento médico;
3. No âmbito interno do CFM, boa parte dos elementos com uma história progressista que aderiram ao Causa Médica, no final dos anos de 1990, foram abandonando o barco ao longo do tempo. Nas divergências internas entre setores oligárquicos e dissidentes da esquerda, os primeiros foram ganhando cada vez mais espaço, porém contando com a experiência política e organizativa dos segundos para manter a condução da entidade, e os efeitos adversos da própria onda conservadora.
Dentre estes efeitos ocorreu a criação de grupos ainda mais à direita, esses sim “fascistas puro sangue”, que tentaram internamente desalojar esse grupo em violenta disputa interna. Esta levou ao desgaste desses quadros com alguma experiência política, e a necessidade de lançamento de figuras sem expressão ou sem um melhor preparo para condução da entidade, baseado em laços de apoio mútuo e lealdade nessa relação utilitária construída com a fração oligárquica;
4. Tanto tempo no poder à frente do CFM gerou internamente também as vicissitudes do hegemonismo. As disputas internas meramente por cargos, a falta de unidade política mais elaborada, a identidade construída em bandeiras de agitação há duas décadas que hoje caem no vazio (ato médico, ordem dos médicos, fechamento de escolas de Medicina, compromissos de governos com os médicos).
Tudo isso leva a falta de uma plataforma concreta, que impulsione a categoria. E nas disputas internas e no carreirismo, muitos quadros importantes, mesmo dentro dos setores oligárquicos estaduais, foram defenestrados e jogados no ostracismo e à própria sorte.
Quebra da unidade na categoria médica – efeitos de 20 anos de hegemonia conservadora e adesão ao autoritarismo.
Os processos produzidos pelo Programa Mais Médicos levarão daqui há alguns anos que o Brasil consiga formar cerca de 40 mil médicas e médicos por ano. Um patamar que poderá proporcionar ao país uma autossustentação no provimento de médicas e médicos a longo prazo.
Contudo, interesses corporativos se movem para tentar impedir essa situação. Uma proposta deles é a criação de exame de proficiência para exercício da profissão, nos moldes dos exames da OAB, para a Medicina. E a outra importante pauta é o controle rigoroso do processo de formação de especialistas e da residência médica.
A implantação do exame de proficiência (exame de ordem) tem dificuldades pela própria natureza do Conselho. Ele não tem autoridade para tal competência...e não tem características como o próprio funcionamento da OAB, que como ordem, agrega atribuições que seriam de natureza sindical, com natureza de associativismo científico, com funções de conselho profissional. Não há mais unidade e sustentação política para uma aliança dessa magnitude para uma reestruturação da entidade, para formar uma Ordem dos Médicos.
Já o controle de vagas para residência médica gera um grande problema geracional, que aumenta a pressão sobre o grupo à frente do CFM.
Serão formados 40 mil médicas e médicos por ano, e no atual ritmo terão pouco mais do que as 18 mil vagas de residência médica de hoje, sendo que sem regulação de vagas e obrigatoriedade da residência médica para o exercício profissional se acentua um problema adicional: vagas ociosas no acesso a especialidades menos concorridas, que geralmente são aquelas mais generalistas e menos procedimento-centradas.
Assim, vai se configurando uma grande fragmentação na categoria médica, formando uma massa de médicas e médicos considerados na lógica da corporação como de segunda categoria, sem titulação, expostos a um mercado de trabalho com mais precariedade.
Geralmente, trabalhando em serviços de porta com maior pressão assistencial, maior desgaste, maiores dilemas éticos, e menor capacidade de reposição de sua força de trabalho, diante das jornadas de trabalho cada vez maiores – especialmente nas urgências, nos serviços de atenção primária à saúde, nos serviços de medicina do trabalho, nas clínicas populares; em detrimento de segmentos com mercado de trabalho mais protegido, dentro de nichos de especialidades com poucas vagas de residência de acesso, grande procura para seleção, e rígido controle corporativo da prática.
Esses grupos de nichos protegidos, alojados nas composições internas do atual CFM, tentam manter esse espaço de uso político exclusivo dessa elite médica, fazendo um discurso como de “representação de toda a categoria”, de “defesa do interesse das médicas e dos médicos”.
Contudo, na verdade hoje advogam em prol de si mesmos e de suas relações privilegiadas, seja na medicina liberal, seja com o empresariamento da saúde, no qual muitos guardam relações que extrapolam o empreendedorismo médico e vão ao encontro da barganha junto aos grandes interesses econômicos em franco processo de monopolização e capitalização do setor saúde, em plena expansão.
Manter a unidade da categoria médica, com espírito democrático, para enfrentar tempos difíceis
A Medicina brasileira terá nos próximos anos uma categoria profissional mais jovem, mais feminina, ainda bastante branca e assentada nas classes médias e altas em sua composição, mas um pouco mais diversificado socialmente pelos programas de acesso ao ensino superior, com maior jornada de trabalho, com menores garantias sociais e trabalhistas, maior precariedade em seu processo de trabalho, mais tendente à competição, com maior mercantilização das práticas de saúde e com profissionais geralmente já mais endividados pelos créditos educacionais e ampliação do acesso privado ao ensino.
Os interesses desse grupo consolidado no Conselho Federal de Medicina (CFM), com o desenvolvimento da categoria, não mais se coadunará, pois serão gerações com questões muito distintas. Uns preocupados em manter seus privilégios; outros mais jovens tentando ganhar a vida, sobreviver e ter um patamar de dignidade e progresso conquistado por anos de estudo e formação.
Para alcançarmos soluções a esses problemas, as saídas de natureza fisiológica não se sustentarão. Será necessário uma capacidade de manter a unidade na categoria médica, para enfrentar esses novos tempos, não mais baseado numa lógica estritamente corporativista, mas resgatando um espírito democrático dentro da categoria e em sua interlocução com os demais setores da sociedade.
:: Resgatar o Conselho Federal de Medicina - parte 1 ::
Como aprendizado na história, equilibrar as demandas internas, específicas da categoria, com as demandas sociais gerais é talvez o caminho mais interessante.
A oposição criada entre Renovação Médica x Causa Médica no final dos anos de 1990 somente gerou como subproduto a perda de uma margem de manobra nas negociações gerais, em prol da Medicina Brasileira, em consonância com possíveis avanços na construção do direito à saúde do país, em que deixamos de ser protagonistas do ponto de vista político.
Isso possibilitou um “mercado persa”, onde a falta de ética, o oportunismo, a visão tacanha do interesse corporativo sem um espírito público, a perda da capacidade de melhor diálogo entre Estado x Mercado x Entidades Médicas x Sociedade Civil como um todo, alimentou uma lógica de moeda de troca. Muito se falou e se barganhou em nome da categoria. E pouco se ganhou de concreto nessa construção.
As anuidades obrigatórias de pagamento das médicas e médicos cada dia mais onerosas vem sustentando uma burocracia corporativa pouco eficaz, cheia de privilégios e com pouca transparência na forma como se dedica à função pública.
Estamos saindo duas décadas depois piores do que há 20 anos atrás.
:: Resgatar o Conselho Federal de Medicina - Parte 2 ::
Assim deixamos claro que o Conselho Federal de Medicina não fala hoje em nome das médicas e médicos brasileiros, mas em nome de um pequeno grupo.
Apuração das denúncias sobre o Conselho Federal de Medicina
As denúncias de omissão e colaboracionismo da atual diretoria do Conselho Federal de Medicina que foram apontadas na CPI da COVID-19 do Senado, são muito graves.
A fala do Presidente do CFM, em 7 de maio de 2020, mostra o tom que geralmente marca a posição elitista desses setores: a impunidade.
Eles consideram que tudo isso é somente um achaque público, e que num acordo “entre os de cima” isso será resolvido e colocado panos quentes!
Não podemos deixar que sejam colocados panos quentes nessas situações!
Uma postura mais definida, menos negligente do CFM, mais assertiva em relação à comunicação e defesa da ciência poderia ter contribuído para salvar muitas vidas.
Para abrir espaço para o esclarecimento dos fatos, medidas precisam ser tomadas:
1. Que os acusados tanto pelo relatório da CPI do Senado da COVID-19, como pela Defensoria Pública da União (DPU) sejam rigorosamente investigados;
2. Que esses sejam afastados de seus cargos durante todo o decorrer da apuração dos fatos;
3. Que o Conselho Federal de Medicina esteja sob supervisão do Ministério Público Federal e pelo Tribunal de Contas da União, com o intuito dos conselheiros remanescentes e sua burocracia não interferirem no andamento de investigações utilizando seu peso institucional;
4. Que esse mesmo acompanhamento pelos órgãos de controle seja estendido aos conselhos regionais de Medicina, que são estruturas integradas ao CFM, e podem interferir nos andamentos processuais;
5. Que confirmado a veracidade das acusações, que haja intervenção do CFM e dissolução completa da atual diretoria.
*A Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares é uma inciativa de profissionais da Saúde e movimentos progressistas para ser um contraponto à ofensiva conservadora da classe médica, com o objetivo de construir um projeto popular para o país.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.
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Edição: Flávia Quirino