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Lutos reprimidos e lágrimas que ainda precisarão ser derramadas

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A pandemia expôs ainda mais as fragilidades de todas as pessoas, agravando irreversivelmente a saúde pública. - Foto: Marcello Casal Jr /Agência Brasil
A tecnologia não consegue superar a dimensão sensorial da dor, do luto, do sentimento de orfandade.

Quando celebramos o dia de Finados neste 2021, não podemos nos esquecer de que é o segundo ano desta celebração vivido de forma muito restritiva.

Esse rito, pleno de significado religioso e também social, tem um importante papel simbólico numa espécie de luto coletivo e elaboração do próprio sentido da morte em meio à vida. 

Para além da tragédia sanitária que se abateu sobre a humanidade, que colocou em xeque o sistema de saúde do mundo e levantou muitas questões a respeito das desigualdades entre pessoas ricas e pessoas pobres, não podemos esquecer o quanto representa ainda para muitas milhões de famílias a ressignificação de seus lutos. 

Debruçando-nos no caso brasileiro, temos situações agravantes que certamente nos deixam ainda mais convictos do quanto se assistiu a um verdadeiro descaso do governo no enfrentamento da pandemia e na decorrência dessa omissão, criminosa até, no número de vítimas fatais e de sobreviventes sequelados. 

Se formos a números, temos mais 600 mil mortes e 150 mil orfandades, decorrentes delas. 

Outro número preocupante é o de pessoas que continuam com sequelas, mesmo depois de se recuperarem da doença - o que se chama de Covid-19 prolongada - que chegam a ser em torno de 10% das que contraíram o vírus. 

Para além desses números preocupantes temos a questão do luto e suas implicações. Em tempos recentes, talvez este tenha se tornado o maior desafio para as religiões em nosso país. 

Além do acompanhamento das famílias durante as internações - cheias de restrições sanitárias absolutamente necessárias - teve-se que acompanhar o drama de muitas famílias que foram impedidas de realizarem os ritos de despedida de seus entes queridos. 

É importante destacar a natureza coletiva dos lutos agravada não só pelo número de vítimas mas também pela maneira como esta pandemia foi tratada pela mídia. 

Diariamente a massificação de informações através de todos os meios de comunicação e os constantes conflitos de narrativas envolvendo fake news, excesso de informação e erosão da confiança da população no enfrentamento governamental da pandemia geraram medo, ansiedade e depressão tanto nos profissionais de saúde como nas famílias.

Muitas organizações religiosas tiveram que se superar no desenvolvimento de ferramentas virtuais que pudessem alcançar o maior número possível de famílias. 

Celebrações, aconselhamentos, formação de cuidadores/as e até ritos fúnebres virtuais em capelas - onde foi possível haver velório, mesmo que rápido - tiveram que ser implementadas para reduzir ao máximo os danos emocionais nas vidas das pessoas. 

Apesar desse esforço sem precedente, é importante destacar que a virtualidade não foi garantia de que lutos tenham sido vividos e ressignificados nesta difícil conjuntura. 

E sempre cabe perguntar sobre uma grande parte da população que não tem acesso a meios digitais. 

A pergunta que cabe se fazer, como organizações embasadas na fé, é: quando se poderá processar adequadamente esses lutos não vividos, reprimidos? 

Me atrevo a oferecer algumas pistas e começo pela necessidade urgente de que se avance para alcançar tratamento psicológico como serviço público de saúde. 

Considerando a conjuntura que se conecta com a pandemia, a elegibilidade mínima para receber atenção psicológica seria estar relacionado por grau de parentesco natural ou afetivo com pessoas falecidas ou afetadas em decorrência da COVID. 

A pandemia expôs ainda mais as fragilidades de todas as pessoas, agravando irreversivelmente a saúde pública. 

Quando se comenta que estamos retornando gradativamente à normalidade, é de se questionar que tipo de normalidade é esta. Lutos e traumas precisam ser enfrentados. 

Há uma grande preocupação a respeito do retorno das crianças ao ensino presencial, principalmente em instituições de ensino público devido à precariedade material em que se encontram. 

Os serviços de orientação educacional estão realmente preparados para isso?

E o que dizer dos/as professores/as?

Como vão lidar com o luto e o trauma das quase 150 mil crianças órfãs? 

Ou que perderam algum parente?

Todas estas questões estão colocadas como desafios para se enfrentar com seriedade. Cada espaço religioso precisa se tornar também um espaço de segurança espiritual e emocional. 

Nisto está implícito o conceito de que o enfrentamento do luto e do trauma causados pela covid-19 precisa ser enfrentado ecumenicamente.  Quanto mais ecumenicamente  fizermos mais eficiente resposta será alcançada.

Como habitante de uma cidade que viveu uma tragédia coletiva como a da Boate Kiss, aprendi na carne  o quanto é desafiador enfrentar um luto coletivo. 

O luto, no caso particular de Santa Maria, envolve outras variáveis agravantes como a própria busca pela justiça contra as pessoas que contribuíram irresponsavelmente para que aquele evento terrível acontecesse.

No caso da covid-19, existem algumas diferenças, mas igualmente semelhanças. A dimensão coletiva foi muito mais ampla, de dimensão internacional. 

Mas também existe um misto de revolta e busca por justiça porque muitas das mortes poderiam ter sido evitadas. Além da dor, há sentimentos de raiva, de impotência, que potencializam a complexidade da ressignificação. 

Nossa geração ainda não havia enfrentado um contexto de pandemia em nível tão complicado. As medidas adotadas de forma tão distintas pelos gestores - considerando-se aqui as variáveis de negacionismo e os distintos interesses políticos e econômicos - afetaram a sociedade e as igrejas gerando a necessidade de respostas rápidas. 

Em muitos campos de atividade foi possível ser criativo, inclusive na condução de atendimento pastoral e litúrgico.

No entanto, a tecnologia não consegue superar a dimensão sensorial da dor, do luto, do sentimento de orfandade, e de tantas situações que foram vividas por pessoas humanas concretas, com sentimentos reais e que precisarão ser acompanhados com muita resiliência. 

A tarefa não é pequena. 

São milhões de pessoas que têm vivido um luto que ainda cobrará uma longa ressignificação. 

Finalmente, embora esse não seja o foco desta pequena reflexão, fica ainda a necessidade de conciliar todo esse desafio com a militância absolutamente necessária para também ser parte do processo de ressignificação da própria política.

Da política que não seja uma política de negação do direito à vida, à saúde e, igualmente, ao luto saudável. 

Luto que não precise ser reprimido e lágrimas que não sejam impedidas de serem choradas!

Texto: Bispo Francisco de Assis da Silva, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil

*Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), nasceu em 1982, em Porto Alegre. Atualmente sua sede encontra-se no DF.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa  a linha do editorial  do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Márcia Silva