Matamos o chefe! Marighella está morto! Foi com essa frase, entoada em tom de celebração, que a jornalista Rose Nogueira, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e então presa em razão de sua atuação política, soube sobre a execução de Carlos Marighella, líder da organização da qual participava.
Apesar da execução programada e celebrada, Marighella foi enterrado como indigente em São Paulo. Seu corpo foi levado para a capital baiana apenas 10 anos depois, em 1979, quando sua família conseguiu recuperar e trasladar seus remanescentes ósseos.
Não se trata de uma história incomum da ditadura militar brasileira, mas em se tratando da figura de contornos míticos de Marighella fica evidente a existência de um plano bem concatenado de apagamento de sua imagem, conhecida e temida.
Da juventude fazendo poesia em Salvador à deputado Constituinte em 1946 e, depois, líder da guerrilha urbana, Marighella foi um pensador da política de seu tempo.
Entre as tantas passagens do personagem pelo efervescente século XX, descritas pelo jornalista Mário Magalhães em livro que baseia o filme, o diretor Wagner Moura elegeu sua vivência após o golpe de 1964 até sua execução pela ditadura militar, cinco anos mais tarde, para retratar no filme: o recorte aposta muitos dos holofotes na narrativa de ação eletrizante com o foco na faceta guerrilheira de Marighella.
A opção, contudo, não nublou a complexidade do protagonista que também é mostrado como um pai atencioso, um estrategista que analisa a realidade e recalcula passos. A abordagem parece afastar as interpretações comuns que entendem os defensores da via armada como aventureiros ou como personagens imunes a crises.
Ao redor do Marighella de Moura, adensam-se aqueles que compartilham da mesma convicção que o líder guerrilheiro. A produção garante no núcleo de convivência do protagonista militantes que transitam do chão da fábrica aos corredores universitários, homens e mulheres de diferentes faixas etárias e - o que possivelmente é a escolha mais comentada do diretor – a opção por empretecer os personagens retratados, fazendo emergir a questão racial não só na escolha de Seu Jorge para viver o personagem, mas também na apresentação da religiosidade de Marighella como filho de Oxossi.
A religiosidade, inclusive, torna-se um tema à parte com a presença do pastor evangélico Henrique Vieira vivendo um dos padres católicos que apoiaram a ALN.
Além disso, o filme de Moura vai além de dar visibilidade a seu personagem principal e também procura estabelecer uma relação entre passado e presente na insistente permanência dos agentes do Estado brasileiro no uso da repressão como forma de controle social das populações mais pobres. É emblemática a cena em que o delegado Lúcio, inspirado no delegado Sérgio Fleury, tortura e mata dois jovens negros em um terreno abandonado.
A preocupação em apresentar os agentes de repressão atuando contra grupos distantes da militância política é louvável para desconstruir a memória hegemônica de que a Ditadura só teria combatido grupos organizados. Ao mesmo tempo, também aponta para a continuidade do genocídio da população negra do Brasil, vítima do racismo estrutural que segue matando jovens negros nas periferias brasileiras.
Dessa maneira, a produção parece responder a um conjunto de críticas direcionadas às visões mais restritivas de filmes anteriores sobre o tema. São respostas do presente que acenam para um futuro de embate político e de disputas de signos hoje cooptados pela direita: a bandeira, o hino, o nacionalismo, a definição de religiosidades legítimas e não legítimas, o papel político das mulheres (ainda que caiba uma ressalva a respeito da secundarização de Clara Charf na trama).
Junto ao também recente Bacurau (2019), Marighella parece se firmar em uma arena do cinema nacional que reivindica outras percepções sobre nossa brasilidade: resistente, insurgente e distante da ideia tão propagada sobre a cordialidade como condição de quem nasce nessa nação.
Para além do cenário cinematográfico, em um momento inimaginável da história política do Brasil – com direito a celebração da violência da ditadura e ascensão do setor militar aos cargos do Executivo – o filme foi impossibilitado de estrear no ano de 2019 devido à ausência da verba do Fundo Setorial do Audiovisual, prevista para a finalização da obra. O fato acendeu desconfianças sobre a postura censora do Estado brasileiro.
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Além dos obstáculos burocráticos, uma onda de ataques da direita organizada também operou ações para a intimidação e redução do sucesso que o filme alcançou. Em entrevistas recentes, o diretor relatou casos de ameaças que a equipe sofreu durante as gravações, além da investida armada contra um assentamento do MST às vésperas da exibição do filme no local. O símbolo de resistência que Carlos Marighella se tornou, por si só, levanta hipóteses explicativas sobre tais reações.
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Assim, o filme é tanto um marco político para o Brasil em tempos de ascensão conservadora quanto um ponto de inflexão nas narrativas fílmicas sobre a luta armada, considerada aqui em sua complexidade na escolha por humanizar os militantes. Faceta que é especialmente explorada no retrato de Marighella como um pai atencioso e preocupado em explicar suas escolhas a Carlinhos.
Nas cartas em áudio que faz para enviar para o filho, a narração oferece uma explicação também ao público sobre os anos em que lutou pela implementação do socialismo no Brasil utilizando a luta armada como ferramenta. Marighella se coloca aqui como a síntese de milhares de guerrilheiras e guerrilheiros que diante de uma situação tão adversa quanto foram os anos de Ditadura no Brasil, fizeram a opção de lutar pelo que acreditavam, com as armas que possuíam. A produção encara a polêmica dimensão do uso da violência como mecanismo da revolução sem reduzir os valores de igualdade social e humanismo presentes na ordem do dia da organização.
Ao terminar a sessão de pré-estreia do filme em Brasília, o letreiro sobe, mas a história não acaba ali.
Começa o coro público do FORA BOLSONARO, o discurso de jovens do Levante Popular da Juventude, as palmas. Pelo Brasil, as fotos das entradas das sessões inundam as redes sociais e consagram a possibilidade de retorno ao cinema, ao espaço público e às arenas de disputa política.
É assim que em contraposição direta aos gritos dos algozes do passado que anunciavam a queda de Marighella, diversos movimentos de esquerda têm se adensado em torno do filme para clamar o contrário: Marighella, presente! Marighella vive!
O fenômeno é consonante com o próprio fechamento do filme, quando Toledo no pau-de-arara ao escutar o torturador anunciar "Marighella está morto, vocês perderam" responde "não, vocês que perderam". A cena do Velho sofre um corte abrupto para a cena de uma jovem chegando ao campo e pegando em armas, que ignora as normas estéticas mais conservadoras e encara a quarta parede. O fechamento do filme acena para a continuidade e necessidade de renovação dos ideias da luta política.
Mesmo após o vazamento de uma versão clandestina da obra antes do lançamento nos cinemas e das reiteradas tentativas de desencorajar sua produção, a chegada do filme às telonas pode ser considerada um terceiro ato ao se inscrever em um embate direto com as políticas do presente com a mira para o futuro.
A verdade é que a despeito das dificuldades para o lançamento do filme, esculpir a figura de Marighella em tempos em que o bolsonarismo passa a ser escrachado pelas denúncias da má gestão da saúde durante a pandemia e pelo fracasso da grande promessa de transformação econômica é dar a oportunidade de reencontro da esquerda com a possibilidade e a necessidade de transformação da realidade política.
*Carlos Malaguti é doutorando em História pela UFRRJ e professor no ensino básico em São Paulo. Estuda luta armada com foco na trajetória da Ação Libertadora Nacional.
**Paula Franco é doutoranda em História pela UnB, pesquisadora de temas ligados à justiça de transição e comissões da verdade da América Latina.
**Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.
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Edição: Flávia Quirino