Impossível não pensar em Severino, como chave alegórica de interpretação de nosso país
A Semente Cia de Teatro, do Gama (DF), após dois anos de paralisação de atividades, retorna ao seu palco em formato de octógno – território do Espaço Semente, fruto de uma ocupação teatral que ressignificou uma construção abandonada próxima à rodoviária e a feira do Gama – que passou a ser um dos mais potentes centros de criação e circulação da produção teatral do DF.
A mostra, que teve início no dia 03 de novembro e vai até o dia 16, apresenta sete espetáculos do repertório do Semente: Miguilim Inacabado (adaptação de Guimarães Rosa), o monólogo Ator (baseado na vida do poeta e dramaturgo Antonin Artoud), Macunaíma (adaptação do romance homônimo de Mario de Andrade), Infinito Vazio (dramaturgia própria), Morte e Vida Severina (adaptação de obra homônima de João Cabral de Melo Neto) e duas peças infantis “Conta outra Clarice” e “Baú de Histórias”.
:: No Gama, mostra de teatro reúne sete espetáculos ::
Uma das principais fontes de inspiração do Semente é a literatura brasileira, com obras e autores de grande complexidade, trabalhos difíceis de se transpor do papel ao palco. O fio da meada que a companhia persegue é a interpretação crítica da experiência brasileira, a figuração de nossos dilemas por meio da transfiguração do dado histórico em forma estética.
Desde o início da pandemia não ia ao teatro, e ontem (11/11) tive a satisfação de fruir a experiência do trabalho teatral de maneira integral, desde a recepção calorosa dos integrantes da companhia ao seu público na entrada do espaço, a entrada no octógono transformado em cenário de Morte e Vida, o apagar das luzes e as diferentes ambientações criadas pela iluminação realizadas pelos diretores Valdeci Moreira, Ricardo César e por Matheus Trindade, a força das canções e coro e a movimentação vigorosa do elenco de atrizes e atores da Cia Semente bem dirigidas pelos diretores.
A potência cênica da companhia decorre da apropriação consciente de influências artísticas e políticas de diferentes matrizes: comparecem ao palco a dinâmica e mística dos terreiros, a criatividade do teatro em comunidade construído em processo colaborativo, a estética do teatro de agitação e propaganda, o lirismo e a força dramatúrgica do material adaptado do texto poético e literário.
Enquanto assistia ao transcorrer do espetáculo, impossível não pensar em Severino e sua tragédia, como chave alegórica de interpretação de nosso país. A fome é indício de como retrocedemos no tempo: assola mais de 20 milhões de pessoas. A insegurança alimentar afeta quase metade da população brasileira. O desemprego e a informalidade do trabalho destitui de direitos garantidos em lei mais de 40 milhões de trabalhadores.
O migrante que parte da seca do sertão para a capital de Pernambuco não é, infelizmente, um personagem do passado. Assombrado pela morte que ronda o caminho entre o interior e o litoral, é também Severino um ser condenado, morto em vida, daí a força da consciência do subdesenvolvimento, bem interpretada pela Cia Semente, ao criar uma atmosfera de luz e sombra, de vozes e personagens, que coloca o protagonista nesse entrelugar vida–morte.
Seria Severino já um defunto migrante, ou há no ato da denúncia da condição de miséria extrema um gesto de esperança?
Na adaptação do grupo, em meio a saga de Severino o coro entoa “Funeral de um Lavrador”, canção épica que Chico Buarque de Hollanda compôs para versão teatral de “Morte e Vida Severina” encomendada pelo grupo do Teatro da Universidade Católica de São Paulo (Tuca), em 1965 – , e neste momento, abrem uma bandeira vermelha no palco, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Os corpos antes alquebrados, entortados pela fome, assumem uma postura de resistência, com as ferramentas de trabalho se tornando instrumentos de luta sustentados por punhos erguidos, os atores se movimentam dando forma a uma marcha, e à canção de Chico se somam palavras de ordem do MST, cadenciadas, com força melódica, com força de mobilização e organização dos despossuídos.
A escolha da direção do espetáculo sobre como e onde fazer inferência a esse sujeito coletivo de luta pela terra, o MST, é de extremo interesse. Não está ao final, como uma mudança de sentido da obra, para um final apoteótico. Não prenuncia ingenuamente que a mudança estaria por mágica logo ali, na esquina. O MST, que nasce em 1984, é herdeiro das Ligas Camponesas, que foram retomadas de forma radical exatamente no ano em que Morte e Vida Severina foi escrita (1955) por João Cabral de Melo Neto.
Os Severinos despossuídos ganham protagonismo naquele vislumbre da intervenção de agitprop promovida pelo Semente em meio ao desdobramento do poema épico de João Cabral. Da visão relâmpago fica a imagem de que a mudança é possível.
Os Sem Terra podem recriar a história, por força de seu trabalho e luta, e reivindicarem não apenas o chão para plantar, morar, mas a cultura, a educação, como bem percebeu Roseli Caldart, que em 1987 escreve uma pioneira dissertação de mestrado – “Sem terra com poesia: a arte de recriar a história"¹ em que aponta a “novidade” do MST: uma organização de trabalhadores em que a poesia e a música, a cultura de modo geral, fazem parte constituinte da identidade e do processo formativo e organizativo sem terra.
O diplomata João Cabral de Melo Neto, autor deste auto de Natal pernambucano, busca representar em chave literária a tragédia do subdesenvolvimento brasileiro, configurada de forma veemente pelo romance regionalista da década de 1930 no Nordeste, pelas obra de Portinari e Di Cavalcanti, e posteriormente pelo Cinema Novo da década de 1950 em diante e pelo teatro brasileiro que encontrou a questão agrária a partir da luta de movimentos camponeses combativos como as Ligas Camponesas.
A versão da Companhia Semente para o poema emblemático de João Cabral não é apenas uma demonstração do inventário de nossa riqueza literária do passado. Quando perdemos mais de 600 mil vítimas para a Covid-19 – 12% das mortes mundiais em um país que representa 3% da população do planeta – e vemos a expressão mortífera da fome por meio de olhos, bocas, gestos podemos notar que voltamos a ser um país de milhares de Severinos, desamparados, despossuídos.
A arte brasileira já fotografou essa tragédia, a luta popular já forjou alternativas: o dilema pautado na obra e recolocado pelo grupo é uma sina intransponível ou uma contradição cujos limites podem ser superados?
¹ O livro foi republicado trinta anos depois, pela editora Expressão Popular (2017).
*Rafael Villas Bôas é professor da Educação do Campo e dos programas de pós-graduação em Artes Cênicas e Profissional em Artes da UnB.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Flávia Quirino