A lista de retrocessos civilizatórios do governo Jair Bolsonaro é extensa, mas uma das que mais salta aos olhos é a condução da política de promoção da igualdade racial, por meio da Fundação Cultural Palmares.
Fundada em 1988, com inspiração na própria Constituição Federal, a autarquia foi o primeiro órgão federal criado para promover, preservar e disseminar a cultura afro-brasileira. Por mais de três décadas, esteve vinculada ao Ministério da Cultura, mas com a extinção da pasta por Bolsonaro, em 2019, passou a estar subordina ao Ministério do Turismo.
Seu atual presidente, o jornalista de direita Sérgio Camargo, que assumiu o cargo em novembro de 2019, é a antítese do que se poderia esperar de alguém nessa posição. Crítico de Zumbi dos Palmares, herói nacional brasileiro - e que dá nome à instituição que preside - Camargo coleciona uma série de platitudes ideológicas que, apesar de não terem qualquer base intelectual, contribuem para animar a turba bolsonarista e desinformar sobre uma das mais graves chagas brasileiras.
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Entre suas "ideias", amplamente divulgadas nas redes sociais, estão a própria negação da existência do racismo no Brasil e a consideração de que a escravidão, apesar de "terrível", foi benéfica para os negros. Ele também defende a extinção do Dia da Consciência Negra, celebrado neste sábado (20), além de verbalizar contra a existência do próprio movimento negro.
Para analisar o atual momento da Fundação Cultural Palmares e os desafios para as políticas de promoção da igualdade racial, o Brasil de Fato DF conversou com o primeiro presidente da entidade, o advogado Carlos Moura.
Atualmente com 81 anos, Moura liderou o processo de implantação da Fundação, entre 1988 e 1990. Entre 2000 e 2003, ele voltou a dirigir o órgão. No início do mês, o advogado foi homenageado na edição do Prêmio pelo Mérito da Igualdade Racial, em evento realizado no Teatro Castro Alves, em Salvador.
Para ele, a atual administração da Palmares busca de forma deliberada atacar a memória e a cultura afro-brasileira, mas não terá êxito.
"Essa gestão está tentando destruir consciências. Tentando, mas não conseguirá. Não conseguirá destruir a consciência da negritude brasileira. Não conseguirá destruir o entusiasmo do movimento negro, da sociedade civil, de negros e negras, e seus aliados, nessa caminhada para a superação do racismo", afirma.
Afirmações não têm qualificação
"O ponto mais grave desse trabalho da Fundação Palmares é querer destruir a memória de Zumbi dos Palmares. As afirmações que têm sido feitas são de um teor que não têm qualificação. Destruir a memória do herói nacional? De Zumbi dos Palmares, que lá no alto da Serra da Barriga, em União dos Palmares, montou a sua cidadela, o seu quilombo, onde negros, indígenas, brancos, todos aqueles perseguidos pela Coroa, encontravam o seu abrigo. E ali, realizavam atividades de amanho à terra, atividades com minério, enfim, desenvolviam todas as atividades vindas de África, trazida pelos nosso antepassados", acrescenta.
Em agosto, o Ministério Público do Trabalho (MPT) chegou a pedir o afastamento de Sérgio Camargo à frente do órgão, após denúncia de assédio moral e perseguição ideológica dele contra servidores e trabalhadores da Fundação que discordam de sua condução. Polêmicas e desmonte resumem a gestão de Camargo à frente da Fundação Palmares. Além de disparar postagens nas redes sociais, ele se ocupa de tentar atacar o acervo da própria instituição que preside. Na ação mais recente, ele decidiu indisponibilizar uma série de livros que fazem parte da biblioteca do órgão.
Em dezembro do ano passado, uma portaria assinada por Camargo alterou a política de escolha de personalidades negras que constam na lista oficial de homenageados pela entidade. A portaria converteu a reverência, anteriormente concedida também a pessoas em vida, em uma homenagem exclusivamente póstuma.
Com isso, nomes de pessoas consagradas na cultura brasileira, como Gilberto Gil, Elza Soares, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, Milton Nascimento, entre outros, foram excluídos do rol de homenageados. Ele também já investiu nas redes sociais contra artistas como Taís Araújo, Zezé Mota, Djavan e vereadora Marielle Franco, morta em um ataque ocorrido em 2018.
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"A Fundação Cultural Palmares, ao longo dos seus 30 anos, vem cumprindo a sua missão de resgatar, de defender, de estudar, de pesquisar os valores culturais africanos que estão na sociedade brasileira. E, com isso, valorizá-los e encontrar mecanismos para a superação do racismo. Esse é o dever da Fundação Cultural Palmares. De 2019 pra cá, isso cessou. Parou. De lá pra cá, a Palmares passou a ser, digamos, a porta-voz da negação do racismo. Esse é que é o problema, muito sério", aponta Carlos Moura.
O alvo preferencial do atual presidente da Fundação Palmares são justamente pessoas negras e pessoas ditas de esquerda. Para Carlos Moura, esse discurso cumpre um papel de fomentar uma espécie de auto-ódio da população negra contra si própria, reproduzindo o próprio racismo já existente na sociedade.
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"De tanto ouvir apequenar o seu igual, as pessoas introjetam aquilo e passam se rejeitar e, consequentemente, a rejeitar o seu igual. É a negação da dignidade do seu igual. Uma tristeza. É preciso que esse senhor passe por um processo de reconstituição pessoal, de consciência, de valores. Um processo de converter-se à dignidade do outro, que está ao seu lado, que faz parte do seu grupo. É um perigo [o que ele faz]".
Caminho democrático
Do alto dos seus 81 anos, Moura promete estar nas ruas neste dia 20 de novembro, quando movimentos sociais do país inteiro irão às ruas pelo Dia da Consciência Negra. Para ele, não há outro caminho de superação do atual momento que não seja pela via da luta popular democrática, que terá nas eleições do ano que vem a principal janela de oportunidade de mudança.
"O caminho é o democrático. No ano que vem, teremos eleição, e precisamos estar atentos. A população brasileira precisa banir, por intermédio do voto, todos esses garantem essa do Estado brasileiro, contra os brasileiros. Nós nos inspiramos nos nossos antepassados, em Zumbi. Estamos resistindo e resistiremos, porque a contribuição que os povos africanos deram para o Brasil, que nós estamos mantendo, é indelével. E é com essa esperança e essa certeza, de que os movimentos negros, a sociedade de um modo geral, os movimentos sociais, estarão sempre trabalhando para a superação do racismo", aponta.
O Brasil de Fato procurou a assessoria da Fundação Cultural Palmares para comentar às críticas a atual gestão, e aguarda uma posição, que será agregada à matéria.
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Edição: Flávia Quirino