A EJA gera movimento, dinamiza as relações sociais, e com isso expande o universo de interlocuções.
“A diferença é que agora nós estamos aqui na universidade, nós é que faremos nossas pesquisas, não seremos apenas cobaias, objetos de pesquisas de pessoas alheias à comunidade”. Foi com essa frase que Vilmar Costa, quando era estudante da segunda turma da Licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília, há cerca de uma década, se colocou em uma polêmica sobre a questão das comunidades quilombolas e assentadas serem objetos de pesquisa da universidade, numa relação assimétrica de poder e representação.
Vilmar se formou com uma monografia sobre a história do povo quilombola Kalunga “A luta pelo território: histórias e memórias do povo Kalunga”.
Na sequência, tornou-se o primeiro dirigente da Associação de Educação do Campo do Território Kalunga e Comunidades Rurais (Epotecampo). Em seguida foi eleito o presidente da Associação Quilombo Kalunga (AQK). No pleito eleitoral de 2020 se tornou o primeiro prefeito quilombola Kalunga, e o único prefeito quilombola de todo país eleito naquele ano. Antes dele, os registros apontam apenas um caso, portanto, foi o segundo prefeito quilombola do país.
No dia 26 de novembro de 2021, aconteceu em Cavalcante, a formatura de uma turma de trinta adultos quilombolas Kalunga que se formaram no primeiro ciclo da Educação de Jovens e Adultos.
O significado simbólico da cerimônia atraiu delegações da Universidade de Brasília e da Universidade Federal do Tocantins. O projeto “Esperançar Alfabetizando jovens e adultos em Cavalcante” é fruto de parceria da prefeitura e secretaria de educação e cultura de Cavalcante com um projeto de extensão do campus de Planaltina da UnB, coordenado pelos professores Maria Osanette de Medeiros e Luís Antônio Pasquetti.
A importância de alfabetizar mulheres e homens quilombolas
Alfabetizar a população e distribuir terras são, historicamente, dois pilares centrais de projetos de transformação social. O território do quilombo Kalunga é considerado o maior quilombo brasileiro, compreende um perímetro que se distribui por quatro municípios de dois estados, Goiás e Tocantins, com cerca de 256 mil hectares.
No período do governo Lula a demarcação de terras foi oficializada, porém até o momento nem todas as fazendas foram retiradas do território demarcado, ou seja, os quilombolas ainda não detêm controle total do território.
A despeito dos conflitos, que envolvem disputas com o desmatamento ilegal, mineradoras que operam de maneira destrutiva ao meio ambiente local e com interesses do hidronegócio articulados ao agronegócio da região, o governo municipal estabeleceu ampla plataforma de parceria com as universidades e conta com o apoio das associações quilombolas locais.
Educação de Jovens e Adultos é uma medida de valor imediato para as pessoas alfabetizadas e suas famílias, pois lhes permite acesso à políticas públicas, créditos e lhes protege de constrangimentos e humilhações que foram enfrentados por décadas. Esse foi um dos aspectos ressaltados na noite de formatura. Wanderleia dos Santos Rosa, formada na terceira turma da Educação do Campo da UnB e hoje mestranda no programa Povos Tradicionais e Sustentabilidade da UnB (MESPT) destacou em sua fala:
“Quero parabenizar a vocês que, com tantas tarefas cotidianas, se dispuseram a aprender a ler e escrever. Os alfabetizadores assumiram a tarefa, enfrentaram o trabalho e fizeram isso de coração. O projeto Esperançar Alfabetizando jovens e adultos em Cavalcante, quando começamos, não tinha nem um centavo de recurso, mas tivemos a força e a coragem. O próximo passo é dizer: vamos tirar a identidade, hoje já posso ser a dona da minha conta no banco, porque muitos constrangimentos essas pessoas têm passado, porque precisam de terceiros para representar os seus bens. E taí o compromisso do prefeito e dos representantes da UnB”.
A EJA pode ser trabalhada também como uma medida agregadora, pois para ser executada precisa do estabelecimento de parcerias, precisa envolver estudantes, professores. É uma ação que gera movimento, que dinamiza as relações sociais, e com isso expande o universo de interlocuções entre os diversos segmentos, do campo e da cidade.
Na esfera dos valores, é uma ação que recoloca em pauta o significado de um projeto soberano e popular para o país, a partir do orgulho de territórios que foram capazes de erradicar o analfabetismo.
Antes de ser uma meta, a superação do analfabetismo é um ponto de partida, uma espécie de alto falante de um projeto de governo, a anunciar que naquela cidade os que resistiram, que sobreviveram, e sofreram as consequências da omissão criminosa de um Estado que virou as costas para o quilombo e suas comunidades, agora serão priorizados, e com eles todo o lastro histórico de pautas, lutas, reivindicações.
Se a formatura já foi um alento diante dos tempos difíceis que vivemos, o que aconteceu no dia seguinte, reforça a impressão que os elos não são apenas pontuais, nem sequer episódicos, pelo contrário, fazem parte de um processo cumulativo e diverso em quantidade e qualidade de ações em andamento.
O dia seguinte
No sábado, três ações de formação e mobilização aconteciam ao mesmo tempo.
No pólo de Cavalcante da Universidade Aberta do Brasil (UAB) estavam presentes uma equipe do Instituto Federal de Goiás com uma oficina de produção audiovisual direcionada para a população de Cavalcante, e a UnB estava presente com o programa de extensão Terra em Cena coordenando uma das iniciativas do Pólo de Extensão UnB Kalunga, cujo foco é o debate dos desafios organizativos do território Kalunga e o papel que os coletivos de teatro e o Teatro do Oprimido podem cumprir em apoio aos objetivos traçados pelas comunidades e associações. Em ambos os casos: socialização dos meios de produção de bens simbólicos, o audiovisual e o teatro.
A atividade do Terra em Cena foi aberta com a devolutiva da pesquisa de mestrado de Luan Gouveia, do programa Desenvolvimento Territorial da América Latina e Caribe (ENFF e Unesp) para um grupo de mais de vinte e cinco pessoas, de comunidades Kalunga de Cavalcante e Teresina de Goiás, além de estudantes da UnB, professoras e diretora de uma escola Kalunga, um vereador Kalunga de Teresina de Goiás e a secretária de educação e Cultura de Cavalcante.
A prática de devolutiva para a comunidade, como forma de democratização do processo da pesquisa e debate sobre seus resultados, antes do processo institucional da banca na universidade, começou a ser discutido em um seminário de pesquisa realizado em 2014, na comunidade Kalunga “Diadema”, em Teresina de Goiás, e definiu linhas de pesquisa prioritárias para as comunidades quilombolas Kalunga, colaborando com o planejamento de pesquisas e ações de extensão de universidades que atuam na região.
Naquela manhã, em outro espaço da cidade, o auditório da Câmara de Vereadores, outro grupo de pesquisadores e estudantes da Faculdade de Arquitetura da UnB discutia com mestres construtores, artesãos locais e membros da comunidade o tema “Arquitetura vernacular Kalunga e saberes locais da Chapada dos Veadeiros”, com discussão sobre os impactos do turismo e da expansão imobiliária na arquitetura vernacular da Chapada dos Veadeiros.
Enquanto isso, na comunidade Kalunga Engenho 2 aconteciam atividades esportivas, e um debate sobre a consciência racial, envolvendo jovens das comunidades, parte deles estudantes da UnB, e um grupo de professores da Educação do Campo do campus de Planaltina da UnB.
Três anos de um governo federal de aspirações fascistas e destrutivas da arquitetura frágil da democracia brasileira não foram capazes de intimidar uma população que, por mais de três séculos de escravidão, conseguiu sobreviver nos vãos de morro do território Kalunga, tendo o Estado brasileiro como algoz.
Vilmar, antes estudante, hoje prefeito de Cavalcante, assim concluiu sua fala na formatura de EJA:
“Quero só agradecer a UnB com essa parceria que tem com nosso município e dizer que nós viemos para fazer história, esse é um momento histórico em nosso município. Para você que não estudou, ainda há tempo, e esse tempo é agora. Tenho a responsabilidade de fazer com que isso vire realidade. Viva Paulo Freire, viva o povo preto, viva Cavalcante!”
Para saber mais:
Reportagem sobre a formatura do projeto “Esperançar” no Boletim UnBTV nº 100. Link: https://www.youtube.com/watch?v=Xce1r_mFgu0&t=507s
Monografia de conclusão de curso de graduação de Luan Ramos Gouveia “Desafios organizativos da resistência quilombola”. Link: https://bdm.unb.br/handle/10483/25775
Artigo Educação do Campo e Pedagogia da Alternância: experiência da UnB no sítio histórico e patrimônio cultural Kalunga” publicado na revista Brasileira de Educação do Campo. Link: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/campo/article/view/7187/16102
Artigo na revista espanhola La Marea “De esclavos a governantes en Brasil” . Link: https://www.lamarea.com/2021/09/10/de-esclavos-a-gobernantes-en-brasil
*Rafael Villas Bôas é professor da Educação do Campo e dos programas de pós-graduação em Artes Cênicas e Profissional em Artes da UnB.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Márcia Silva