Precisamos de uma campanha perene, integradora e com força para fazer repercutir na sociedade
O ano de 2021 foi particularmente muito difícil para o Brasil tendo em vista o agravamento da pandemia da covid-19 e a amplitude dos problemas sociais, tais como o desemprego e a inflação galopante cujo efeito principal é o derretimento do poder de compra das famílias mais pobres.
Apesar de um contexto assaz nebuloso, devemos comemorar os números da vacinação no país, fato esse que tem contribuído para amenizar a pressão sobre o sistema de saúde e a flexibilização das medidas mais restritivas de circulação.
A descoberta da variante ômicron, no entanto, ascendeu novamente a preocupação das autoridades colocando em compasso de espera o tão desejado retorno à “normalidade”.
Nos altos e baixos de um Brasil pós-pandemia, o que de fato tem me preocupado entre tantos outros problemas é a volta da fome como uma questão estrutural.
Os dados sobre a insegurança alimentar no país são alarmantes. De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, publicado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), mais da metade dos brasileiros (116,8 milhões) convivem com algum grau de insegurança alimentar.
O relatório mostra também que são 43,4 milhões os que não tinham alimentos em quantidade suficientes e 19 milhões os que enfrentavam a fome.
A Geografia da fome mostra que apesar de generalizada em todas as regiões o quadro é mais alarmante nas regiões Norte e Nordeste, especialmente nas áreas rurais.
Ou seja, um verdadeiro paradoxo encontrar a fome justamente onde se produz nossos alimentos.
Interessante lembrar o clássico livro Casa-Grande e Senzala de Gilberto Freyre e deparar com uma descrição da fome no Brasil colônia no qual o sociólogo já fazia naquele momento uma relação entre a fome e a “sombra da monocultura esterilizando tudo”.
Impossível não fazer uma associação com os dias atuais quando percebemos que em paralelo ao crescimento da fome o agronegócio bate sucessivos recordes na produção e exportação de commodities, com destaque para o complexo soja.
Porém, na cesta de natal dos brasileiros nem tudo é soja e com isso, itens importantes da cesta básica, a exemplo da famosa dupla feijão e arroz, perdem espaço em termos de área plantada para dar lugar a um pequeno grupo de commodities.
Ademais, não obstante sermos líderes em produção de proteína animal, a carne tem se transformado em artigo de luxo para muitos comensais.
Se a fome no rural é um paradoxo e que muitas vezes não ganha destaque pois acomete os chamados rincões, sua face urbana é visivelmente chocante nas principais cidades brasileiras.
Convive-se diariamente com milhares de pessoas revirando lixo em busca de alimento e engrossando filas para comprar ossos em promoção. Isso sem falar nas pessoas em situação de rua cuja fome é apenas o problema mais urgente.
Mais uma urgência que se repete a cada novo pôr do sol.
Na pandemia houve uma piora desse cenário e mesmo com todas as medidas adotadas pela sociedade civil organizada em torno de campanhas solidárias como foco na arrecadação e distribuição de cestas básicas e marmitas, tal medida sempre será paliativa caso não tenhamos um esforço conjunto envolvendo igualmente o Estado com suas políticas públicas e a iniciativa privada com ações complementares.
Ou seja, vale a máxima de que a fome é um problema de todos e todas.
E ela infelizmente não sumirá com o advento de um novo ano. Precisamos de uma campanha perene, sistemática, integradora e com força para fazer repercutir em várias instâncias da sociedade.
Quem poderia imaginar que em pleno século XXI o tema da fome ocuparia mais uma vez um dos pleitos principais das campanhas presidenciais.
Nossa tarefa é acompanhar o debate político e cobrar dos candidatos ações concretas para a superação da fome no Brasil.
Uma vergonha nacional que atravessa séculos!
*Juscelino Bezerra é geógrafo, doutor em Geografia e professor na Universidade de Brasília
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Márcia Silva