A arte marginal sempre foi uma forma importante de redução da violência entre os povos marginalizado
Já parou para pensar como a história da cidade se confunde com a sua?
Quanto as paredes desenhadas, as casas que se multiplicam e as ruas que se bifurcam contam a história de uma cidade e das pessoas que moram ali. A cultura Hip Hop, entre suas temáticas, tem o registro dessas histórias de lugares e pessoas que de outra forma poderiam não ter voz.
Na entrevista a seguir, convidamos a grafiteira Flora para partilhar sobre sua atuação no Hip Hop, por intermédio do grafite, na construção da paisagem e realidade local, dos espaços de atuação para além das ruas.
Conte um pouco sobre você e seu trabalho como grafiteira.
Sou Thamiris Oliveira da Silva, também conhecida como Flora, tenho 28 anos, sou natural do Maranhão, mas moro em Santa Maria-DF desde criança. Sou formada em enfermagem e faço mestrado em Bioética. Atuo na cultura de Brasília desde os 17 anos com o teatro de bonecos, junto do grupo Cia Cidade dos Bonecos e, posteriormente, com a Cia Voar Teatro de Bonecos.
Ali tive a oportunidade de me profissionalizar e trabalhar na área, aprendendo a elaborar e desenvolver projetos, assim como também sobreviver a partir disso. Hoje estou como agente e produtora cultural, também nas artes visuais e no graffiti. Tenho muitos trabalhos espalhados nas mais diversas cidades do DF. Na arte urbana do DF, sou precursora e membra do 1º Comitê Permanente de Graffiti de Brasília, pioneiro no Brasil, como representante civil e a única mulher do grupo. Ainda faço parte de movimentos sociais, como da Nação Hip Hop Brasil, do Núcleo de Formação Popular Família Hip Hop, da Associação Nacional Pós-Graduandos, da UBM, Unegro e UNALGBTQIA+ e do movimento estudantil.
Você sendo mulher, quais foram os desafios enfrentados e como você vê a presença de mulheres na cultura/movimento Hip Hop?
Como mulher e negra, os desafios dentro da sociedade como um todo são bem mais comuns do que deveria. Nunca esperam de nós a independência e/ou a propriedade intelectual, nem a prosperidade. Em qualquer ramo que se tente construir, assim como muitas outras mulheres negras, já sofri diversos tipos de assédios. Mas no movimento Hip Hop – que na minha visão até pouco tempo não considerava as ideias e movimentos feministas, ou a defesa de uma representatividade maior de mulheres – atualmente já se pode perceber uma mudança.
Existe a vontade de não mais reproduzir os traços do mandato da masculinidade característico das sociedades ocidentais e coloniais. Ou seja, acredito, sim, que o movimento Hip Hop, mesmo sem o processo dinâmico de emancipação da mulher, conseguiu reproduzir em seu meio esse processo emancipatório, muito pela perseverança e habilidade das mulheres. A abertura desse debate na sociedade e dentro do movimento consegue solidificar e condicionar de forma mais orgânica esse processo. Hoje as mulheres possuem grande influência e muita importância no movimento Hip Hop.
Você faz parte do Conselho de Cultura da Santa Maria, certo? Qual sua opinião sobre as políticas de cultura para a cidade?
Sim, e acho que a construção de políticas públicas mais acessíveis aos artistas menos favorecidos tem aumentado desde a minha primeira gestão como Conselheira. Digo isso no sentido de ser o momento em que eu passei a acompanhar esses processos. Alguns pontos, a organização mais orgânica do próprio Conselho, e certos ganhos da última gestão, como o uso de editais públicos mais simples e acessíveis, bem como a real representatividade na Administração Regional (com um gerente de cultura eleito pelos próprios artistas).
Mas antes disso, algumas medidas foram importantes, como a regionalização dos recursos e editais do FAC e as simplificações dos editais, a qual tive a oportunidade de acompanhar e contribuir. Hoje percebo tal importância para a promoção da equidade para o acesso desses recursos. Claro que sempre pode melhorar, mas desde 2018, com a eleição de novos administradores, esses processos e ganhos para os artistas locais foram deixados de lado. Optou-se por uma agenda política menos ligada à realidade local e mais populistas, travada em interesses eleitoreiros, num descaso com a continuidade de políticas que estavam dando certo.
Qual a importância da arte periférica no atual contexto político em termos de processos de conscientização e educação das pessoas? Os artistas da Santa Maria estão fazendo isso?
A arte marginal sempre foi uma forma importante de redução da violência entre os povos marginalizados. Nossa arte, além de expressão humana, também é ferramenta de luta coletiva. Sem dúvida, a ascensão e construção da sociedade ocidental moderna, amparada na exploração, na escravidão de negros e índios, dissolvidas na contemporaneidade, colocou os povos, vistos como subalternos, à margem cultural e moral. As culturas desenvolvidas a partir desses povos, no caso a arte urbana e o Hip Hop, conseguem transcender essas moralidades hegemônicas, promovendo a noção de pertencimento diferenciada no nosso meio, logo desenvolvida como contracultura e fazendo surgir formatos novos, diversificados, mas também conscientes diante das classes e hierarquias sociais, gerando artistas mais críticos.
Sendo você uma artista engajada politicamente, qual mensagem você manda para a juventude da Periferia?
Não deixe sua voz se perder, não deixe sua consciência na neblina. Nossa realidade é clara e a diferença entre os poderosos é evidente. Não veja isso como algo simples ou justo, ainda com tudo, nós também merecemos o melhor. Temos capacidades e talentos de sobra para estarmos em qualquer lugar que algum dia sonhamos ou queremos. A única diferença entre nós e eles é a oportunidade, e aí está a primeira chave, não a única, claro: para alcançarmos todos os nossos sonhos é preciso lutar por mais e melhores oportunidades. Não abandone seus sonhos e lute sempre por eles, pois você não está sozinho.
* Este é um artigo de opinião. A visão das autoras e autrores não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Márcia Silva