A liberdade praticada pelo prisma liberal não é liberdade, é privilégio.
O Brasil é conhecido mundialmente pela tradição de vacinação. O perfil vem sendo manchado por grupos antivacinas, que têm como garoto propaganda o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro. Ele e seus apoiadores disparam discursos repugnantes, sobretudo com utilização das chamadas fake news, em oposição à obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19 e ao passaporte sanitário.
A alegação é o direito à liberdade individual, independente de qualquer outra coisa. Isso escancara o perfil negacionista, individualista e potencialmente criminoso do grupo, que centraliza o exercício de direitos no próprio umbigo.
Embora as investidas dos grupos antivax no Brasil não mobilizem multidões, as ações se multiplicam país afora.
No Rio de Janeiro, a Assembleia Legislativa foi invadida por integrantes do grupo antivacina durante votação de projeto de lei que tratava sobre o tema da imunização contra a Covid-19. Em São Paulo, a Praça da Sé e outros espaços públicos são palco para atos contra a obrigatoriedade da vacina que combate o coronavírus. Em Fortaleza, capital cearense, houve mobilização na Câmara Municipal para reivindicar o “direito” de não se vacinar. Em Brasília, um grupo de manifestantes antivacinas protestou em frente à sede da Organização Pan-Americana da Saúde, durante audiência pública para debater a vacinação de crianças de 5 a 11 anos.
Nas agitações, os antivacinas levantam cartazes com dizeres como “ditadura sanitária”, “não sou cobaia” e (pasme) “meu corpo, minhas regras” – palavra de ordem utilizada por feministas pelo direito ao aborto legal. As frases grafadas ou faladas em discursos que se propagam em colunas de jornais de grande circulação, vídeos e plataformas de streaming se apropriam, sem nenhum pudor, do direito humano à liberdade de expressão. E no topa tudo por dinheiro da vida real, os meios de comunicação lucram ainda mais – afinal, desinformação gera clique.
O Spotify, a maior plataforma de música por streaming do mundo, não titubeou em manter disponível o podcast de Joe Rogan, que espalha desinformação sobre a Covid-19. Questionados, os donos da plataforma disseram que “equilibram” a segurança dos ouvintes com a “liberdade” para criadores.
No portal Metrópoles, que teve mais de 1 bilhão de visualizações só em novembro do ano passado, o colunista Guilherme Fiuza tem espaço liberado para fazer discursos antivacinas, inclusive afirmando que os imunizantes contra a Covid-19 estão “em fase de teste”. Não estão.
De acordo com a pesquisadora científica e diretora do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Butantan, Viviane Maimoni Gonçalves, são quase 20 anos de estudo sobre a tecnologia para combater o vírus. O início foi em 2003, quando houve o primeiro surto global envolvendo um coronavírus. Ela conta que, à época, a universidade de Oxford já estudava o SARS-CoV, “mas nenhum imunizante chegou a ficar pronto porque a pandemia acabou antes”.
Os comentários antivacinas se intensificaram nas plataformas digitais como Twitter, Facebook e YouTube. As plataformas chegaram a criar alguns mecanismos para coibir as chamadas fake news, mas a desinformação continua sendo um negócio oportuno para as multimilionárias.
Estratégia rasteira
A evocação da liberdade de expressão e outras liberdades individuais para proferir barbaridades não é exclusiva dos antivacinas e nem é novidade no Brasil. Não são raros os casos de conteúdos racistas, misóginos, homofóbicos, xenófobos que tentam se apoiar naquilo que é caro à democracia. Uma estratégia rasteira para manter viva a discriminação, a violência, o preconceito, o ódio e todo tipo de atraso que pavimenta a política bolsonarista.
Na contramão de tudo que se considera razoável, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, ainda disponibilizou o disque 100 – principal canal de denúncias de violações de direitos humanos – para pessoas antivacinas que se sentirem “discriminadas”. O ato, questionado pela Procuradoria Geral da República, assegura ao grupo, principal rede de apoio a Bolsonaro, respaldo institucional, o que viabiliza a continuidade de suas ações.
A liberdade de expressão deve sim ser reivindicada e protegida, bem como todas as liberdades individuais. Mas, pela própria Constituição brasileira, não há direito absoluto. O limite está no iminente dano à coletividade. E seria no mínimo negligente omitir que incitar pessoas a não se vacinar em plena pandemia é um risco real à sociedade.
É flagrante que a liberdade individual reivindicada pelos antivacinas é deliberadamente contrária ao direito fundamental à saúde pública e, consequentemente, à vida.
Desde o início da pandemia, em março de 2020, 630 mil pessoas morreram vítimas da Covid-19 no Brasil; 5,71 milhões no mundo. Famílias inteiras foram arrasadas. Mães perderam filhos. Crianças ficaram órfãs.
Em meio ao cenário de medo e caos generalizado, com a vacina indo para o braço das pessoas, o mundo pôde tomar fôlego. Diante de tudo que já foi vivido, é perverso tolerar discursos antivacinas ou mesmo ponderar a recusa injustificada de ser imunizado.
A liberdade praticada pelo prisma liberal não é liberdade, é privilégio. E mesmo nisso os antivacinas se perdem, já que, cientificamente, não há qualquer vantagem em não se imunizar. Atualmente, a maioria das pessoas que morrem por causa da Covid-19 não está vacinada. Pior para aqueles que, carentes de políticas públicas de saúde e longe de poderem exercer o direito humano à comunicação e à informação, se tornam alvo.
Em um país tomado pelo absurdo, uma dose de racionalidade cai bem.
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*Rodrigo Rodrigues é professor de História da rede pública de ensino do DF e presidente da CUT-DF
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Flávia Quirino