Naquela que já foi considerada a maior favela da América Latina - maior até do que a internacionalmente conhecida Rocinha, no Rio de Janeiro -, um grupo de mulheres se apossa do petróleo que abunda no subsolo e passa a comandar toda uma rede de comércio ilegal do produto na periferia do Distrito Federal.
A alegoria do "petróleo é nosso" ganha um novo significado (e uma nova gramática) a partir do Sol Nascente, extremo oeste de Ceilândia, no mais novo filme do principal nome do cinema candango na atualidade, o goiano-ceilandense Adirley Queirós. "Mato seco em chamas" será exibido essa semana no 72ª Festival de Cinema de Berlim, um dos mais prestigiados do mundo.
A mostra começou no último dia 10 e segue até o próximo dia 20 de fevereiro, na capital alemã. O filme está na programação da sessão Fórum, que reúne as obras mais experimentais e politizadas selecionadas para o festival.
"O filme nasce com uma perspectiva de pensar a história do petróleo, aquela promessa que os royalties do pré-sal beneficiariam a saúde e a educação, as promessas da Dilma. A gente troca esse refrão do petróleo 'é nosso' para o petróleo 'é de nóis', pensando nessa gramática mais de periferia, uma gramática dos territórios. Uma apropriação tanto da ideia imaginária quanto da linguagem desse petróleo", diz Adirley durante conversa com o Brasil de Fato, diretamente de Berlim, onde está desde a semana passada para acompanhar o festival.
Codirigido com a portuguesa Joana Pimenta, 'Mato seco' é uma mistura de ficção com documentário, com participação de não-atores, pessoas da própria comunidade, cujas histórias reais se incorporam ao roteiro que nunca é previamente fechado. É uma metodologia já consagrada na filmografia de Adirley e em seus trabalhos com Joana.
"A gente começou a trabalhar sobretudo com mulheres que eram ex-presidiárias. Então, o universo da cadeia, sobretudo da Colmeia, a prisão feminina do DF, torna-se completamente central no filme. Existe um bate-volta contínuo entre o Sol Nascente e a Colmeia. As históricas que começavam no nosso filme acabavam depois por entrar na prisão, e histórias da prisão vinham pra fora", observa Joana.
Cinema etnográfico
"O estilo de filme que fazemos tem muito a ver com o processo, de estar junto, de experimentar, de viver com as pessoas. É uma metodologia que a gente assume mesmo", analisa Adirley.
Reconhecido nacional e internacionalmente por filmes como "Rap, o canto da Ceilândia" (2005), seu primeiro curta, e longas premiados como "A cidade é uma só?" (2011), "Branco Sai, Preto Fica" (2014) e "Era uma Vez Brasília" (2017), o diretor que nasceu no interior de Goiás, mas se criou na periferia mais emblemática do Distrito Federal, buscou um caminho pouco usual de fazer cinema, que ele mesmo define como um abordagem etnográfica da ficção.
"Muitas pessoas lidam com o mesmo objeto, o mesmo território com que a gente lida. O que acho o que é diferente no nosso cinema talvez seja essa perspectiva de produção, do modelo de produção. Os filmes demandam um tempo, a gente propõe uma ficção, mas filma como um documentário. A gente propõe histórias loucas e no final a gente quer que as pessoas vivam aquelas histórias loucas, e isso transforma o filme, depois, numa abordagem quase etnográfica. Essa coisa que a gente chama etnografia da ficção, de certa forma não é nova porque Jean Rouch fez lá atrás, mas no cinema brasileiro tinha pouco essa abordagem", analisa.
Trabalhando juntos desde "Era uma vez Brasília", Joana e Adirley compartilham também uma visão sobre o fazer cinematográfico. Nas palavras da cineasta portuguesa, uma relação de complementaridade que enriquece o trabalho conjunto da dupla.
"A gente filma muito do mesmo jeito que vive, então acaba sendo um continum entre as conversas, aquilo que a gente fala e discute e o ato de começar a filmar. Passamos muito tempo nas locações, observando, conversando com os personagens. Fora isso, acho que a gente se complementa mais do que converge. Eu penso muito em termos de imagens, de chegar num lugar e imediatamente pensar em planos, enquadramentos, nessa transformação do mundo para imagens. Já o Adirley, como a gente sabe, é um excelente diretor de atores. Então, no processo dessa codireção, essas duas coisas acabam muito naturalmente por achar um lugar, a gente confia um no outro. O Adirley confia em mim para tentar entender o espaço através dos quadros e eu confio nele nesse trabalho com os atores, a gente vai conversando e convergindo a partir dessa complementaridade".
Homenagem
Além do Festival de Berlim, ele também participa da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes, mas dessa vez como o grande homenageado da edição que exibirá, de forma online, mais de 160 obras.
"É muito honroso ser homenageado pela Mostra Tiradentes, até porque é um festival que eu gosto muito. Sobre Berlim, obviamente que acho importante passar nesse festival. Essa sessão em que ele será exibido é a mais politizada do festival. Porém, mais importante do que passar em festivais internacionais, que dá uma certa legitimidade, claro, é o filme em si, é ele poder ser exibido. A gente não faz filme para esse ou aquele festival, mas sim para que ela possa ser visto".
"Mato seco em chamas" já tem convites para ser exibido em outros festivais internacionais, e Adirley alimenta a expectativa de estreá-lo no Brasil, ainda sem data prevista. "A gente quer que ele passe em sala de cinema, uma ou outra sala da capitais, estamos nessa expectativa de acontecer isso assim".
Quanto à sempre aguardada exibição no Distrito Federal, o diretor se entusiasma mais com a ideia de apresentá-lo diretamente na Ceilândia do que exibi-lo no palco mais tradicional do cinema na capital do país.
"A ideia seria estrear no Cine Brasília, de algum forma, no festival [de Brasília]. Só que o festival virou uma caretice com o Cine Brasília. Até enquanto espaço político é super difícil lidar com aquilo hoje em dia. Eu penso que seria importante estrear na Ceilândia, nem que seja uma projeção na rua, já que não tem sala de cinema. O filme é político tanto na produção quanto na distribuição", reforça.
Olhar periférico
Nos seus quase 20 de carreira, sempre projetando a perspectiva da periferia para o cinema, Adirley Queirós sabe medir bem a temperatura desse território.
Essa trajetória de observador periférico coincide também com um período em que o país viveu transformações as mais contraditórias, desde a ascensão e sucesso econômico e social dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), até sua derrocada, o golpe de 2016 e a degradação democrática vivida após a eleição de Bolsonaro.
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Uma análise sobre esse processo, do ponto de vista da periferia, é algo extremamente complexo, reconhece Adirley, mas ele arrisca alguns pontos.
"O espaço periférico sempre foi meio tenso. A periferia reflete o que é o país, e ela é a maioria do país. Nos governos Lula e Dilma, o que a gente tinha, talvez, era uma maior esperança entre os jovens, eu acho. Tinha cotas, maior acesso às universidades públicas. Em termos de cultura, como exemplo, foi muito bom. Muita gente conseguiu fazer os primeiros filmes, teatro, literatura. Ao mesmo tempo que teve um avanço grande em representações e acessos, também teve um isolamento muito grande de uma certa geração que não estava nesse lugar, que não estava lutando por essas questões. Essas pessoas foram jogadas de lado. O bolsonarismo se aproveitou dessas contradições no espaço periférico. Uma certa geração de 35 a 40 anos, por exemplo, da periferia, não participou dessas políticas públicas importantes dos governos progressistas. Eles ficaram alienados nesse processo todo", analisa.
E emenda a crítica ao que considera uma incapacidade de compreensão, por parte dos setores progressistas, das vivências nas regiões marginalizadas.
"Acho que o que falta, desse lugar progressista, é uma sacação dessas tensões periféricas. A questão do encarceramento, por exemplo, que nosso filma lida muito com essa ideia. Nós não temos um discurso anti-encarceramento do ponto de vista do progressismo. A gente ainda o legitima, o próprio governo progressista fez esse discurso de oprimir e prender, de atacar os movimentos sociais de um lado, apesar de apoiar de outro. O mais importante é a gente disputar a linguagem, disputar essa gramática da periferia".
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Edição: Flávia Quirino