Deglutida por seguidas gerações, a Semana de Arte de Moderna de 1922 vive
Em 1952, no 30º aniversário da Semana de Arte Moderna, o poeta pernambucano, mas radicado no Rio de Janeiro, Manuel Bandeira (1886-1968), em entrevista ao maior jornal do estado à época, o Diário Carioca, foi perguntado sobre o que tinha a dizer da efeméride. Respondeu que nada, pois entendia ser muito cedo para avaliar a influência daquele movimento.
“Esperem 2022. Se nesse ano ainda se lembrarem da Semana, aí, sim, façam avaliações de sua importância”, recomendou.
Na resposta do poeta não havia uma gota da peçonha bairrista que o escritor e jornalista mineiro, mas igualmente radicado no Rio, Ruy Castro tem destilado para tentar desqualificar, não raro com ataques ad hominem, os expoentes intelectuais e artísticos do movimento: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Menotti del Picchia – e, corroborando o bairrismo que o move, poupando os cariocas Di Cavalcanti e Villa-Lobos de seu ferrão.
Bandeira, admirador e amigo de Mário de Andrade, com quem trocou volumosa correspondência, fora apenas racional em sua resposta, tanto que quando o repórter lhe perguntou se acreditava que a Semana seria lembrada após os cem anos de sua realização, não hesitou em responder: “Tenho a impressão que sim” – e acertou.
Um século depois de seus idealizadores, nas palavras do professor e pesquisador da USP, Luiz Armando Bagolin, “implantarem no Brasil uma arte moderna que representasse o desejo de demonstrar que a velha nação rural, oligárquica e escravocrata ficara definitivamente para trás”, a Semana de Arte Moderna continua provocando incômodos à moral burguesa, e não poderia ser diferente: foi parida durante a República Velha, da qual o atual governo, inimigo tanto da educação quanto da cultura, emula ideais e políticas fedendo a mofo que garantam privilégios para poucos e atraso, em todos os sentidos, aos milhões restantes – e não à toa o primeiro ministério extinto pelo presidente Jair Messias Bolsonaro foi precisamente o da Cultura.
O movimento é elaborado e realizado quando, em termos locais, São Paulo, segundo o historiador e professor Nicolau Sevcenko (1952-2014), "Não era moderna, mas já não tinha mais passado", e, em termos nacionais, o Brasil esboçava uma face que inspirou o escritor e crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981) a sentenciar o país como condenado ao moderno, sem nunca chegar a sê-lo.
Com um olho crítico ao provincianismo das elites de então para com a Europa e o outro olho antevendo o potencial para criação de uma nova cultura (na forma, artística, mas de conteúdo também político e social), os futuros modernistas deglutiram a cultura estrangeira e, a partir de sua digestão, criaram uma cultura própria e genuína, uma dialética que, para o sociólogo, professor e crítico literário Antonio Candido (1918-2017), foi a criação e a colaboração mais brilhante do movimento para nossa cultura.
Dos anos 1920 em diante, o Brasil passou a ser visto com novos olhos, pesquisado e interpretado não só com maior diversidade, mas também com maior engajamento social, qual se dá todas as vezes em que é escrito um novo capítulo na História, criando-se um marco.
Porque emblemática, portanto, a Semana de Arte Moderna suscita debates, divergências, polêmicas, e o principal: inspira.
Influências
Em 1937, em um discurso em homenagem ao poeta baiano Castro Alves, Oswald de Andrade afirmou que “os negros são a vanguarda dos que pedem a justiça social".
Em 2020, o rapper Emicida produziu o show “AmarElo – É Tudo pra Ontem”, de forte apelo social, do qual realizou também um documentário. Nele, constrói uma ponte direta com a Semana de Arte Moderna, citando Mário de Andrade como seu modernista favorito, e, deglutindo Oswald, diz que “só o que é do outro me interessa”.
O espetáculo foi realizado no mesmo Theatro Municipal em que a Semana de Arte Moderna redescobriu, reinventou e fundou o Brasil de e para todos.
*Diretoria da Associação dos Docentes da Universidade de Brasília (ADUnB - S. SInd. do ANDES-SN)
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Márcia Silva