Quanto tempo sobra para a classe trabalhadora viver arte?
Sempre que volto do mercado tenho vontade de mastigar algo. Aquele malabarismo de carregar sacola, abrir alguma embalagem caminhando e coordenando vários movimentos ao mesmo tempo.
Outro dia fiquei me perguntando o motivo de fazer isso. Atitude meio ansiosa, né? Por que não esperar e comer com calma em casa? É horrível comer andando, afobada.
Então lembrei que quando eu era criança o programa familiar de muitos sábados era ir ao mercado no fim de tarde ou comecinho da noite. No caminho de volta a gente comia batatinha frita de saquinho daquela marca famosa. Na divisão ficava pouco para cada um e o desejo enorme do próximo sábado chegar.
Quem me conhece sabe que eu adoro mercado. Andar pelos corredores, ver rótulos, pensar nas futuras receitas para preparar delícias preenchidas de amor. E a tal da batatinha sempre chama minha atenção. Hoje nem gosto tanto do gosto, mas a embalagem sempre atrai meus olhares gerando uma espécie de alegria quando vejo. Uma sensação boa de sentir.
Muito do que achamos que é coincidência aleatória é memória afetiva.
Contei essa história da batatinha no início de uma oficina de teatro e em seguida as pessoas foram rememorando várias situações ligadas a sabores, cheiros, sensações, objetos que são marcantes em suas vidas.
Uma grande roda de contação de história se abriu. Uma história puxando outra, um sentimento puxando outro. Esse balaio de causos virou exercício de cena e depois de duas horas e meia com várias atividades tínhamos um robusto esboço de cena. Carregado de memórias afetivas.
Contamos histórias o tempo todo. Narramos nossas vidas uns para os outros. Assim mantemos vivas tradições, culturas. Construímos presentes e sonhos.
Não existe um jeito certo de contar uma história. Isso torna a contação um ótimo exercício para o Teatro.
Teatro é vida. É memória, presente e futuro. É bonito ver quem nunca fez uma oficina de teatro por vergonha, timidez, perceber que o teatro está dentro da gente. Não é sobre talento ou “nasceu com brilho para fazer arte”. É sobre oportunidade, acesso, contato, metodologia, prática. Teatro é para todos e todas.
É sobre tempo.
Tempo de olhar para si, para o próprio corpo, para a comunidade, para as memórias individuais e coletivas, para as histórias em volta. Olhar com visões múltiplas. A arte estimula a diversidade de olhares, ajuda a quebrar padrões de pensamentos e a voar em outros voos. É um bonito movimento de permitir-se.
Arte requer tempo, respiro, entrega.
Quanto tempo sobra para a classe trabalhadora viver arte? Para narrar as próprias histórias?
Quanto tempo sobra para viver?
A luta é por democratização do acesso à cultura e aos modos de fazer. Mas antes de tudo é uma luta por direito ao tempo.
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*A Cia Burlesca é uma companhia de teatro político do Distrito Federal.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.
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Edição: Flávia Quirino