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Coluna

Sobre Mães Paralelas e pactos de não silêncio

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Filme acompanha a trajetória paralela de duas mães, enquanto tentam criar seus filhos - Foto: Divulgação
Trata-se de uma experiência para além do cenário espanhol: toda a América Latina viveu sob repressão

Mães Paralelas, de Pedro Almodóvar, lançado na plataforma de streaming Netflix Brasil em 18 de fevereiro, chegou causando alvoroço e trazendo polêmicas, por isso acho necessário começar este texto com dois anúncios.

O primeiro é contém spoiler (e começa logo nas próximas linhas). O segundo é mais sensível: o filme foi considerado misógino e machista em muitas análises e esse tipo de crítica não pode ser ignorada. A trama trabalha vivências maternas, relações homossexuais e traz à tona homens padronizados e óbvios para o contexto patriarcal: violadores, pais opressores e o clássico lugar não preenchido daqueles que decidiram não assumir a paternidade.

Este texto não vai – e nem pretende – esgotar as possibilidades de análise desse filme e considerando que muitas críticas em relação ao potencial machista e misógino do filme foram feitas, gostaria de oferecer um olhar para uma dimensão da história que foi tratada em muitas dessas críticas como uma parte secundarizada e pouco elaborada da trama.

Trata-se de como as histórias dessas mães e de toda uma pátria (ou seria melhor usar o termo mátria?) foi atingida por um passado violento que deixou um legado traumático. Por isso, o texto que segue não irá focalizar esforços em tratar as figuras masculinas abordadas na trama, pois parece estar na mão das mulheres a regência dos principais feitos da história.

Ainda que seja evidente que as atitudes masculinas violentas e agressivas definam trajetos relevantes do desencadear de acontecimentos, o Diretor não mira centralmente para essas histórias.

Pelas regras da Geometria, é pressuposto que linhas paralelas jamais se cruzarão ainda que sejam congêneres… mas o cinema e a história não são ciências exatas.

Mães Paralelas, título do recente filme do espanhol Pedro Almodóvar, pode evocar a máxima de que “mãe é tudo igual”. Há mesmo quem acredite que isso seria suficiente para colocá-las todas em um mesmo grupo: daquelas que gestam o futuro, que cuidam, que oferecem ao mundo algo novo. Mas nas camadas de sua história descobrimos algo que está além das similaridades óbvias.

Janes, interpretada pela atriz Penélope Cruz, poderia ser enquadrada em muitos dos quesitos do que se considera uma mulher moderna (ainda que essa ideia pareça decadente): fotógrafa arrojada, sexualmente bem resolvida, autônoma em suas escolhas, (quase totalmente) dona de sua própria história.

Ela elege sua maternidade resultante de uma relação não tão sólida e formal quanto a moralidade sugeriria e assume sozinha os cuidados com aquele prenúncio de futuro que é a menina a quem dá a luz. Em paralelo, Ana, vivida por Milena Smit, ainda é uma adolescente quando se vê compulsoriamente levada a enfrentar a gestação e a maternidade.

Enquanto Janes sente-se honrando a sua ascendência quase exclusivamente feminina ao criar a filha sozinha, Ana é arrastada pelo destino imposto pelas regras morais e conservadoras, da qual sua família é partidária, a romper seus laços familiares e forjar um novo caminho para trilhar.

Trajetória justifica escolhas

Acontece que o tempo e a própria história não são fenômenos de mão única correndo em um só curso e isso é muito bem captado pela narrativa de Almodóvar. A trajetória percorrida por Janes vem de passados mais longínquos que sua própria existência e, ainda, que a própria narrativa construída para justificar suas escolhas: o que a define, afinal, não é resultado apenas da soma das histórias de vida de sua bisavó, avó e mãe - protagonistas da linhagem familiar estritamente feminina -, o que a define é também a subtração causada pela ausência violenta de seu bisavô, vitimado durante a Guerra Civil Espanhola na década de 1930 e, desde então, desaparecido.

Nesse cenário de tensões múltiplas, Ana e Janes - que parecem tão diferentes embora o lugar de mãe as paralelize - encontram-se na figura de Cecília: a bebê com quem Janes deixa a maternidade acreditando ser sua filha, mas que o desenrolar da trama revela tratar-se de uma troca de bebês. É a personagem de Cruz que descobre sobre o erro do hospital e ela quem, em nome da verdade, rompe o silêncio aparentemente confortável de continuar criando a filha não-biológica.

Cecília representa mais que um futuro comum que impõe-se às personagens maternas, ela também unifica o legado deixado pelo passado que não é só de Janes, mas de toda uma nação: a herança violenta da guerra, que durante o período subsequente, a ditadura do general Francisco Franco, foi abafada por um pacto de silêncio bem delineado para o apagamento dessa passagem histórica.

Esse apagamento acabou resultando em uma justificativa conveniente para a defesa do esquecimento em relação ao passado. O famoso "virar a página” é repetido como mantra por gerações e por diversos setores sociais, inclusive por Ana, que aprende em sua base familiar conservadora a não questionar os pilares da moralidade em suas diversas facetas.


Cena do filme Mães Paralelas / Divulgação

Construção da narrativa

O mérito do filme está justamente na erupção que causa entre a história de um grande acontecimento e as histórias pessoais que se desenrolam a partir do fenômeno. Afinal, para além do grande evento dos desaparecidos da Guerra Civil Espanhola - que, na produção, foi digna de uma pesquisa minuciosa sobre como tem sido as políticas de busca e identificação dessas pessoas - também tem vida trivial acontecendo.

E não se trata de qualquer vida, mas sim de vida complexa permeada por conflitos emocionais, incertezas e crises, assim como alegrias singelas e relações sinceras. A trivialidade da vida – e isso inclui relações, desejos, tristezas, traumas e incertezas - parece humanizar a histórias triunfais.

Esse modo de construir a narrativa costurando a vitalidade das experiências familiares e pessoais no tecido estrutural da memória do país pode ser uma entrada para compreender o impacto coletivo desses feitos traumáticos. Não se trata da história teórica e sem vida que se esgota na materialidade dos livros.

Ao contrário, trata-se de uma experiência compartilhada para além do cenário espanhol: toda a América Latina que viveu sob forte repressão dos organismos estatais, principalmente durante os anos 1970, carrega a ferida do desaparecimento de pessoas como parte constitutiva de seu relato sobre o passado.

Não é sem motivos que nesta semana, o Ministro do Interior argentino Wado de Pedro reuniu-se na Espanha com familiares de vítimas da Guerra Civil que buscam, ainda hoje, pelos remanescentes de entes queridos. Ministro esse que, não coincidentemente, também tem sua vida pessoal atravessada pelo trauma de ser filho de mãe desaparecida.

No encontro, esteve presente o diretor de Mães Paralelas, o qual foi presenteado com símbolos políticos argentinos, como o pañuelo branco utilizado pelas Madres e Abuelas da Praça de Maio como signo de reconhecimento de sua pauta: a localização e identificação de suas filhas e filhos que desapareceram nas mãos da ditadura e o encontro com suas netas e seus netos - que, ainda quando bebês, foram retirados de suas mães e destinados a outras famílias.

Sempre prudente lembrar que no Brasil além de também carregarmos o histórico das pessoas desaparecidas durante a ditadura, também somos testemunhas da luta, predominantemente de mulheres, na busca pela localização e identificação dessas vítimas.

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O caso da Vala Clandestina de Perus talvez seja o mais emblemático nesse ponto, o episódio também evidencia a permanência da estratégia de desaparecimento como movimento que transborda o contexto de perseguição a militantes de esquerda: dos mais de mil conjuntos ósseos humanos sem identificação de identidade, calcula-se que muitos pertençam a vítimas do surto de meningite e a operações do Esquadrão da Morte.

Também não se trata tão somente de vítimas de contextos ditatoriais, prova que a Chacina de Acari - quando 11 jovens desapareceram no ano de 1990 na cidade do Rio de Janeiro - vem nos dar.

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Transbordando as fronteiras impostas pelas telas do cinema, as advindas dos territórios nacionais ou das periodizações de conflitos, em um mundo patriarcal em que a paternidade é facultativa, Mães Paralelas estão para além da história de Almodóvar.

Estão nas Madres e Abuelas da Praça de Maio argentina, nas mães e companheiras de pessoas desaparecidas sepultadas sem identificação no cemitério da periferia paulista de Perus, nas mães de Acari que buscam filhas e filhos vitimados no subúrbio carioca, na madre espanhola que também é neta de uma vítima da guerra civil (Janes) ou na madre espanhola que apesar de não ter sido diretamente atingida pelo conflito passa a fazer parte do grupo de herdeiras dessa memória (Ana).

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Seguramente, essas mães são resultantes de uma estrutura patriarcal que reiteradamente as empurra para a função do cuidado. Muitas vezes a figura do pai sequer existe, é verdade.

E também é verdade que no curso da história essas mães pariram e parem denúncias e verdades sobre passados constantemente submetidos aos pactos de silêncio, é verdade que elas inscrevem suas práticas como uma tradição predominantemente de mulheres: a tradição de guardar e fazer circular memórias.

PS: vale registrar que a polêmica em torno do filme foi discutida com dezenas de amigas e amigos que se dispuseram a compartilhar suas visões – algumas totalmente opostas as minhas. A essas pessoas, agradeço pela generosidade.

*Paula Franco é doutoranda em História pela UnB, vinculada ao Instituto Gino Germani da Universidade de Buenos Aires. É editora e colunista do site História da Ditadura e pesquisa temas ligados à justiça de transição e comissões da verdade da América Latina.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Edição: Flávia Quirino