Por que não aprendemos na escola sobre Lélia Gonzalez
É março e as mulheres vão às ruas se manifestar, assumem a linha de frente das marchas, formam fileiras, batuques e cirandas, levantam bandeiras, protagonizam falas firmes, mostram suas cores, incendeiam o céu.
Neste mês tão simbolicamente importante para a organização e para a luta das mulheres, quero lembrar de brasileiras que, como Lélia Gonzalez e Heleieth Saffioti, interpretaram a realidade, escreveram e assumiram a autoria do seu texto.
Escrever sobre a realidade das mulheres, nossas condições de vida, nossas dificuldades e os sonhos de um mundo melhor é um ato a ser reconhecido e apropriado pelas mulheres. Ler mulheres é necessário.
Quando a Pantera Negra Ângela Davis nos disse “Leiam Lélia Gonzalez!”, se expandiu o horizonte de que temos uma grande intelectual negra com formulações sobre a sociedade brasileira, nos presenteando com ensinamentos sobre mulheres, classe e raça.
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Mais comumente lembramos da análise crítica e revolucionária da realidade brasileira apresentada nos textos de Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Caio Prado Júnior, Milton Santos, Abdias do Nascimento, por exemplo, mas pouco lembramos os nomes das intelectuais mulheres no nosso país. E sim, precisamos de obras feministas para tratar da realidade da mulher na sociedade brasileira de forma consistente.
Heleieth Saffioti (1934 – 2010) e Lélia Gonzalez (1935 – 1994) são autoras brasileiras, intelectuais orgânicas, políticas, que analisaram compreenderam e explicaram a dinâmica da realidade brasileira na perspectiva de mulheres.
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Elas ressaltam a importância da formação política e da educação no processo de conscientização e de luta, situando o debate econômico e de organização política integrados à análise da subjetividade, das relações e dos afetos. Essas mulheres inspiradoras, ao lado de Maria Firmina dos Reis (1822 – 1917), Antonieta de Barros (1901 – 1952), Nise da Silveira (1905 – 1999), Patrícia Rehder Galvão, a Pagu (1910 – 1962), Carolina de Jesus (1914 – 1977), Rose Marie Muraro (1930 – 2014), Vânia Bambirra (1940 - 2015), Maria Beatriz Nascimento (1942 – 1995), Elisabeth Lobo (1943 – 1991) e tantas outras, nos mostram por meio de suas obras que pensar a realidade e escrever sobre ela é um ato feminino.
A estrutura de poder em nossa sociedade, se alimenta de uma distribuição muito desigual, em detrimento das mulheres.
Por que não aprendemos na escola sobre Lélia Gonzalez, que situa a mulher negra no debate da democracia racial no Brasil e mostra a contribuição da mulher negra na formação sociocultural brasileira?
Como escreveu Saffioti, o gênero, a raça/etnicidade e as classes sociais constituem eixos estruturantes da sociedade, entretanto, ‘estas contradições, tomadas isoladamente, apresentam características distintas daquelas que se pode detectar quando juntas, no nó que formaram ao longo da história’. Que precioso e complexo entendimento encontramos no texto de mulheres!
Assim também são os textos de Heloisa Buarque de Hollanda, Conceição Evaristo, Amelinha Teles, Sueli Carneiro, Virgínia Fontes, Azelene Kaingang, Mirla Cisne, Monique Prada, Jaqueline Gomes de Jesus, Helena Silvestre e outras nossas, na ativa, escrevendo sobre mulheres brasileiras na sociedade capitalista.
Além da participação direta de mulheres na filosofia, na política, na ciência, nas mais diversas profissões, na espiritualidade, nas artes, a superação da desigualdade estrutural também passa por uma reorganização dos espaços afetivos, de cuidado, pelo exercício da prática coletiva e solidária diária e pelo direito das mulheres de decidirem sobre seu próprio corpo e sua sexualidade.
Mulheres em luta não vão sucumbir
Em meio aos protestos de março, em defesa da vida das mulheres e contra violência, recebemos os mais diversos convites, ora revoltados, ora afetivos, para semear Marielles, plantar sem veneno, superar a fome, vacinar as crianças, suspender despejos na pandemia, acessar a justiça, mudar o governo, proteger os povos indígenas, promover a dignidade menstrual e gestacional, garantir saúde, educação, terra e trabalho, preservar a natureza, enfrentar o preconceito, o machismo e o racismo.
E, aqui, lançamos outro convite, para que mulheres se aventurem nas andanças da escrita, já que mulheres escritoras são potentes fontes de transformação, rebeldia e libertação.
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*Ju Amoretti é cientista social, psicóloga, pesquisadora de mulheres, direitos humanos e pensamento social latino-americano e, agente cultural no DF.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino