Fundada para ser o espaço da liberdade e autonomia foi confrontada - ou assaltada - pela ditadura
Ao pensar sobre o autoritarismo brasileiro (2019) a historiadora Lilia Scwarcz elege como porta de entrada para sua reflexão o fato de o Brasil ser um país jovem no que corresponde ao estabelecimento das instituições nacionais, e compara nosso tardio empreendimento de universidades com nossos vizinhos na América do Sul.
Em que ponto a universidade (ou a ausência programada, o sucateamento e a descrença desses espaços) esbarra no autoritarismo, afinal?
Escavar o solo simbólico do passado da UnB faz com que necessariamente tempos mais longínquos que a própria fundação da instituição emerjam.
A universidade fundada para ser o espaço da liberdade e autonomia foi confrontada - ou assaltada como sugeriria um de seus idealizadores, Darcy Ribeiro - pelo projeto autoritário da ditadura logo depois de sua inauguração, apenas dois anos antes do golpe de 1964.
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Camada 1 – O projeto
Além de tardio, o processo de estabelecimento institucional ao qual se referia Schwarcz, iniciado em 1908, não foi suficientemente exitoso para garantir que no final dos anos 50 do século posterior Darcy Ribeiro fosse recebido com entusiasmo ao propor o estabelecimento da universidade pública na nova capital. A ideia foi vista com desconfiança pelas elites políticas que associavam estudantes a baderneiros, o que em teoria não combinava com o (também em teoria) arrojado projeto pensado para a capital de arquitetura modernista e ares libertários.
Só no fim do segundo ano de existência da cidade e após muitas gestões políticas que, em dezembro de 1961, foi aprovada a lei de criação da UnB e, na esteira dela, seu Plano Orientador.
As bases sonhadas sustentavam ambições de uma instituição planificada e autônoma, princípios que foram detalhados ao longo do documento em medidas de participação estudantil nos conselhos, relacionamento intenso entre universidade e comunidade e liberdade de construção de currículo para professoras e professores. Tudo isso organizado por uma fundação, com liberdade para desenhar suas estratégias orçamentárias e administrativas e, portanto, alheia ao regramento disposto para as demais universidades federais, limitadas pela “burocracia ministerial”.
Não é sem motivos que nesse momento, embalada pela perspectiva de se cravar no cenário nacional como a “universidade nova”, a UnB contou com um grupo de notáveis intelectuais de diversas áreas para conduzir o ensino e demais atividades da universidade, a convite de seus fundadores. O sonho de inovação, contudo, durou pouco tempo.
Camada 2 – O assalto ao projeto
Honestino foi presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) e estudante do curso de Geologia. Junto a Ieda Santos Delgado e Paulo de Tarso Celestino da Silva conformam o grupo de estudantes da UnB vítimas de desaparecimento forçado durante a ditadura.
“O projeto original nunca existiu”. Foi assim que o reitor em exercício durante os anos 1970, José Carlos Azevedo, referiu-se à iniciativa de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Na ocasião, ele - que fora também capitão da Marinha - respondeu dessa maneira ao comentário de que teria sido o responsável por roubar a alma da universidade, feito pelo cineasta Vladmir Carvalho no filme Barra 68 (2000).
Com base nas justificativas morais, a UnB foi constantemente monitorada pelo aparato da repressão e da censura durante toda a ditadura: a Biblioteca Central viveu em intensa vigilância, professores foram demitidos ou renunciaram as suas carreiras em protesto às reiteradas invasões e outras intromissões na dinâmica universitária, estudantes foram para a prisão e conviveram com intensa perseguição, reitores civis foram destituídos. Para muitos estudantes da instituição na época do golpe, a ditadura significou o fim do sonho da universidade inovadora.
Entre os feitos mais marcantes, o campus sofreu invasões em 1965, 1968 e 1977 resultando em prisões de estudantes e até em uma comissão no Senado para tratar o conflito.
A Comissão da Verdade Anísio Teixeira, instalada para apurar a repressão na UnB, empreendeu um expressivo levantamento de fontes e identificou diversos episódios de violações de direitos humanos ocorridos na universidade durante a ditadura operadas por uma estrutura legal e burocrática da repressão por redes internas e externas à Universidade, assim como identificou variadas formas de resistência e protesto.
Camada 3 – Um projeto mais antigo
É preciso fazer um parênteses muito importante: não se pode ignorar que mesmo programada na contramão do conservadorismo mais obviamente identificado, a UnB foi germinada em um solo marcado pelos soterramentos de corpos e, junto com eles, de histórias. Como os de Expedito Xavier Gomes e de Gelmar Marques, os dois candangos que batizam o auditório assim conhecido.
A intenção de fundar uma universidade nova, portanto, precisa ser lida tanto considerando o assalto que a ditadura operou visando a destruição do projeto original da UnB, quanto pela longa tradição de elitização do ensino, de marginalização, silêncio e apagamento de setores sociais estrategicamente afastados desses espaços.
Camada 4 – A soma de todos os projetos
É nessa estrada longa, que soma muito mais projetos de boicote ao ensino superior e à universidade do que projetos de sonho com ambientes acadêmicos pujantes que a UnB chega aos seus 60 anos, expondo em suas paredes e em sua essência a memória e o conflito que resulta de todos esses projetos.
Quando retornou ao campus que hoje leva seu nome em 1995 durante cerimônia em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa, Darcy Ribeiro relatou que a ditadura taxava os professores de perigosos.
Qualquer semelhança com o presente, neste caso, não é mera coincidência.
Àquela altura, todavia, Darcy completou: “gosto de pensar que éramos mesmo”. Que reverbere!
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*Paula Franco é doutoranda em História pela UnB, vinculada ao Instituto Gino Germani da Universidade de Buenos Aires. É editora e colunista do site História da Ditadura e pesquisa temas ligados à justiça de transição e comissões da verdade da América Latina.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Flávia Quirino