Distrito Federal

Coluna

Campo da Esperança

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Se não fossem os candangos, as demais Regiões Administrativas do DF e o Entorno, Brasília não passaria de uma cidade fria, indiferente, segregada e chata, que por vezes é". - Foto: Arquivo Público do Distrito Federal
Reescrevo a história, desafogando a voz e a narrativa das e dos verdadeiros construtores de Brasília

- Os sacos de cimento vazios servem como telhado e com os restos de concreto e madeira dá de fazer o que você quiser. Basta ter fé. Estamos aqui, construindo a cidade do futuro. Seja bem-vindo à Brasília!

Arminda reconheceu a voz, ainda que imantada pelo Sol que se punha no horizonte, pintando o céu de um alaranjado-lilás imponente. Era a voz de seu pai que dava as orientações de como se instalar a um recém chegado. O homem vinha de Amargosa-BA, em busca de melhorar a vida e terminar de construir a capital.

A vista era toda terra vermelha cavada e monumentais armações de aço cru, que reluziam no anoitecer a promessa de sustentar as paredes do que em breve seria a casa do povo, o Congresso Nacional. Os restos de madeira que serviam de paredes para os barracos eram manchadas pelas tintas que desbotavam das roupas estendidas nelas, o que dava à vila um colorido diferente do cinza do concreto da obra.

Os que passavam pela triagem do INIC e não encontravam alojamento nas construtoras, de pronto buscavam um lugar para se abrigar na Vila Amaury, ou Sacolândia, como era chamada pelos que circulavam nos canteiros. 

Acostumada a brincar nos becos e vielas, Arminda, apesar de menina pequena, conhecia bem cada pedaço da vila que estava fadada a um dia desaparecer submersa nas águas, como Atlântida, de um futuro lago. O pai não acreditava nos boatos e nos avisos de que a vila seria alagada e jurava com os pés juntos que os filhos cresceriam em Brasília e que nem mesmo depois de morto veriam o feito. 

– Nem Deus inunda estes barracos! Dizia o pai, sempre que voltava da ZBM ou da Cidade Livre. Arminda e os irmãos se divertiam com a fala do pai embalada pela cachaça e com o jeito que sua mãe olhava para ele e repreendia: - Se for da vontade de Deus, inunda, sim; e ainda te afoga, como castigo pela sem-vergonhice e beberagem.

Vestido sempre com roupa social, em casa o pai de Arminda era um homem de poucas palavras, mas na vila era conhecido como um exímio contador de histórias, um sonhador irremediável e um apaixonado por Brasília. Foi para o Centro-Oeste do país com três sonhos: dar uma vida digna à esposa e aos filhos, construir a capital e viver nela. Sonho que compartilhava com a mulher e que transmitiu aos filhos, nas infinitas declarações e juras de amor que fazia à sua amada, Brasília.

O desejo por ver a cidade dos seus sonhos erguida era tamanho que não se importava em dividir seu amor com mais outros 14 mil homens, candangos, que deixaram suas terras e que como ele trabalhavam noite e dia para ver edificado o Plano Piloto, de Lúcio Costa. Por hora os trabalhadores recebiam Cr$ 21.000,00 (vinte e um mil cruzeiros), se passasse das 8h de trabalho estabelecidas pela CLT, recebiam Cr$ 25.000,00 pelo tempo adicional. Isso importava, mas bem pouco, para o pai de Arminda. 

– Não me importa quem te planejou, nem que essas mãos te toquem, adorada. Nada me afeta. O que me vale é vê-la erguida. Devaneava durante a labuta exaustiva.

Num amanhecer, quando levantou pra mijar, ao colocar os pés no chão quando descia do jirau, sentiu um molhado gélido que quase batia em suas canelas. Um arrepio sinistro lhe subiu a espinha e de longe ouviu aproximar um sonido que lhe lembrava o canto do Acauã. Era o lago que enchia. Era Deus vindo se vingar.

Mal teve tempo de entender o que acontecia, ouviu esmurrar a porta um soldado da Guarda Especial de Brasília, que exigia que quem estivesse dentro abandonasse imediatamente o barraco. O pai de Arminda que conhecia bem a truculência e covardia de alguns guardas da GEB, que dias antes daquele instante tinham cometido uma verdadeira chacina em um refeitório, não demorou pra abrir a porta. O soldado bradava: - Saia do barraco agora! Se não sair por bem, vai sair por mal.

A mulher que despertou com os gritos, impassível, acordou Arminda, a mais velha, e pediu para que ajudasse os irmãos a se vestirem e a juntar tudo o que conseguissem carregar numa trouxa. Com a água batendo nos joelhos, as crianças juntaram as poucas mudas de roupa que tinham, enquanto os pais tentavam salvar alguns documentos, alimentos e utensílios que conseguiam colocar em sacos de cimento que mantinham para forrar o teto quando um velho saco se desfazia na chuva. 

Com os olhos encharcados de tristeza e rancor, com a voz embargada, o pai de Arminda sussurrava: - Larguei minha terra, casa, família, amigos; passei dias num pau-de-arara sem ter nem o pão que o diabo amassou pra comer, pra vir trabalhar mais que burro de carga em época de colheita pra te ver levantada e é com esse desprezo que você me paga, Brasília?!

“Apedreja essa mão vil que te afaga, escarra nessa boca que te beija!”. Ingrata.

Desolados e sem rumo, caminhavam em direção à saída da vila, quando um funcionário da Novacap os parou e avisou: - As famílias removidas da Vila Amaury serão transferidas para uma das cidades satélites. Podem escolher para aonde ir: Sobradinho, Taguatinga ou Gama. 

Neste instante, já não sentiam mais a água que tocavam suas pernas, a notícia da nova morada veio como um desafogo, trazendo ar de volta aos pulmões. A resposta imediata não tardou. Antes da vila ser inundada e se transformar em Lago Paranoá já sabia para onde iria recomeçar mais uma vez a vida com sua família. O pai de Arminda era cruz-maltino.

*

Escrevi este conto em 2020, nos 60 anos de Brasília para o jornal Jararaca. Aqui, publico com algumas alterações. Outras também virão. Gosto especialmente dele porque fala do período da construção da capital numa outra perspectiva, pelo olhar do candango.

Nasci em Ceilândia, meus pais chegaram no DF trazidos por seus pais e familiares que buscavam melhores condições de vida, assim como os pais de Arminda. 

Meu avô Rafael foi o primeiro a chegar em 1959, vidraceiro de profissão trabalhou na colocação dos vidros dos ministérios. 

Anos depois dos despejos e da inauguração da cidade, eu, sua neta, passava pela esplanada em direção à Universidade de Brasília. Nesse percurso, quando passava em frente aos ministérios, mentalizava a imagem de meu avô, que só tive a oportunidade de conhecer por fotos e pelas histórias que me contavam sobre ele, sua generosidade e honestidade. 

Em 2019, na exposição ‘Capitais do Brasil’, no centro do centro, lá estava o sobrenome de meu avô, BASTOS, colado a uma parede do Museu Nacional da República, exposto junto ao poema escrito por sua neta, EIXO. Tempo depois, tive a alegria de trazer a memória e o sobrenome de meu avô de volta à capital. Reparação histórica? Longe disso.

Ano após ano, quando chegam as celebrações dos aniversários da capital e não vejo darem os devidos méritos aos verdadeiros construtores de Brasília, aqueles que deram seu suor e sangue para ver fundada a capital, sinto uma indignação profunda. 

Meu avô desencarnou indo para o trabalho. 

Para dar vasão à justa indignação, utilizo do principal instrumento que tenho para combater certos apagamentos: minha escrita.

Reescrevo a história, desafogando a voz e a narrativa das e dos verdadeiros construtores de Brasília.

Consciente da história e da realidade, como o amor deve ser, amo Brasília. Até tenho amigues e amores que vivem nela. Meu avô e minha família fazem parte da História dessa cidade.

Se não fossem os candangos, as demais Regiões Administrativas do DF e o Entorno, Brasília não passaria de uma cidade fria, indiferente, segregada e chata, que por vezes é. 

O calor e a cor da capital estão muito distantes do centro, estão entre a EPTG e a Estrutural, entre o Catetinho e a EPNB, está da ponte pra cá.

:: Leia outros textos desta colunista ::

*Meimei Bastos é escritora, educadora e produtora cultural. Coordena o ponto de cultura Caracas, véi e o Campeonato de Poesia Falada do DF e Entorno.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato DF no seu Whatsapp ::

Edição: Flávia Quirino