O artigo 227 da Constituição Federal estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito, “além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
No entanto, os dados da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP) apontam uma dissonância entre a teoria e a realidade para crianças e adolescentes da capital federal. Nos três primeiros meses de 2022, foram registradas 130 ocorrências de estupro, 81 dos registros foram de vítimas vulneráveis, ou seja, crianças e adolescentes de até 14 anos, contabilizando 100 vítimas.
A Secretaria explica que a diferença entre a quantidade de ocorrências e o total de vítimas se da pelo fato de que em 17 ocorrências houve mais de uma vítima. O relatório mostra que 82,2% dos casos registrados, entre janeiro e março deste ano, de violência sexual contra crianças e adolescentes aconteceram no ambiente familiar.
Em 2020 e 2021 foram registrados 369 e 392 estupros de vulneráveis, respectivamente. Contabilizando 761 casos em dois anos, uma média de 1 estupro de criança ou adolescente por dia.
De acordo com o Centro de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes do DF (Cedeca), o número de abusos contra crianças e adolescentes tem crescido em todo o país. “Um dos fatores para esse aumento, para além da cultura machista e sexista, está o de que a criança e o adolescente, em decorrência do isolamento social, ficaram distante de espaços de convívio em que denúncias poderiam ser feitas, sendo o principal lugar para isso, a escola”.
A Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal (VIJ-DF) alertou para o aumento do risco da exposição de crianças e adolescentes a situações de violência ou negligência durante a pandemia. “Em 2020, 95.252 denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes foram contabilizadas pelo canal Disque 100, da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Isso representa mais de 260 denúncias diárias de violações”, destaca.
O Cedeca explica que esse tipo de violência ocorre por diversos fatores e o principal está relacionado à lógica machista e sexista na qual a sociedade está construída, “que transforma corpos em objetos, em especial os corpos mais vulneráveis, que são justamente os de crianças e adolescentes, principalmente das meninas”.
“Outro elemento que corrobora para que tais violências aconteçam, é o fato de abusador também ter sido abusado e isso demonstra que não há um acompanhamento para a vítima, pois esse assunto é um tabu, sendo um tabu, não é enfrentado e encarado de frente, nos colocando em um ciclo de violências”, observa o Centro de Defesa.
Silenciamento
A psicóloga do Cedeca, Geysy Santos, ressalta que apesar do aumento considerável no número de violações e abusos de vulneráveis, o que ser percebe é a existência de um silenciamento em torno da temática de violência contra crianças e adolescentes.
“Existe um nível de segredo e isso é extremamente complexo quando a gente pensa a proteção das crianças e adolescentes, justamente, porque o segredo se configura como uma manutenção da violência”, afirma.
Para ela, é fundamental a desmistificação do tema e ampliar o debate sobre educação sexual no âmbito escolar, familiar e “demais espaços para que a gente possa identificar de forma mais acentuada quando alguma coisa puder acontecer”.
“É extremamente importante que não haja silenciamento nem por parte das autoridades, da sociedade civil, das entidades que trabalham na busca e garantias de direitos, mas das próprias crianças e adolescentes que tem que se sentir confortável e com confiança para quando alguma coisa violar o seu direito, elas terem espaço para buscar ajudar”, ressalta Santos.
Punição
De acordo com o Centro de Defesa, o processo de responsabilização aos abusadores ainda é frágil, “devido ao fato de a criança ou adolescente não ser ouvida com atenção e cuidado, e mais que isto, não ser vista enquanto um sujeito de direitos, um ser humano”.
A organização aponta que além do processo punitivo, “é necessário pensar em estratégias educativas, pois a lógica punitiva, muitas vezes não promove reflexão. Nossa cultura é a da punição, porém, se queremos romper com as lógicas de violência, devemos pensar em processos educativos e uma forma disso ocorrer, é que todas as instituições da sociedade devem abordar o tema, falar abertamente, mas isso não ocorre, pois muitas das vezes as pessoas que deveriam estar falando, educando, são as que estão cometendo violências contra as crianças e adolescentes”.
O relatório da Secretaria de Segurança informa que das 81 ocorrências de estupro de vítima vulnerável, no primeiro trimestre de 2022, foram identificados 86,4% do total dos autores, ou seja, 70 autores. No entanto, não há dados sobre a responsabilização criminal dos abusadores.
Atuação
Para a psicóloga Geysy Santos, as políticas públicas voltadas ao combate da violência contra crianças e adolescentes ainda não são suficientes para a redução de casos. Ela explica que é necessária uma articulação conjunta de várias frentes para garantir a proteção e a garantia de direitos desse grupo.
“A gente não pode acreditar que o Estado vai conseguir sozinho resolver e dar conta do que a gente tem como um problema extremamente estrutural, que tem a ver com uma cultura adultocêntrica. Enfim, além das políticas públicas a gente precisa do engajamento da sociedade civil, da participação popular. Além da construção da autonomia e emancipação das subjetividades das crianças e adolescentes que vão também poder, de alguma forma, ter noção do que está acontecendo a sua volta e vão se sentir acolhidos para pedirem ajuda, por exemplo”.
Ela frisa que as políticas que são voltadas, especificamente, ao combate de abusos e violências contra crianças e adolescentes são, em sua maioria, elaboradas para denúncias e acolhimentos. Nesse sentido, Santos defende que é preciso “pensar de forma preventiva também”.
Onde buscar ajuda
Em caso denúncia de violência física, psicológica, sexual ou negligência contra crianças e adolescentes, procure o Conselho Tutelar, a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), localizada no Complexo da Polícia Civil no Parque da Cidade ou através do Disque Denúncia pelo telefone 197.
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Edição: Flávia Quirino