Distrito Federal

Coluna

O teatro, o violino e a reviravolta da vida

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Oficinas da Cia Burlesca na Unidade de Internação em São Sebastião DF, em 2018 - Foto: Matheus Alves
Igor vai para o futuro

A mão fria sua muito. Igor pega o violino que quase cai da mão de tão molhada, coloca-o sobre o ombro e olha atentamente para o professor.

Já fez dezenas de vezes esse movimento, colocou o violino no ombro, pegou o arco, colocou-o sobre as cordas olhou atentamente para o professor esperando seu sinal, mas nunca com tanto nervosismo.

A atriz fala o texto, e na deixa exata o braço do professor dá o sinal. É hora de executar a música. Apesar de ter feito isso várias vezes, desta vez uma presença na plateia causa mais suor, nervosismo e emoção.

Há seis meses Igor nem imaginava um dia tocar violino. Sua ocupação e preocupação maior era manter-se vivo. Envolvido com o crime desde os 14 anos, hoje com 16, está em uma unidade de internação para adolescentes em conflito com a lei.

Seu medo de morrer pela polícia ou por uma gangue rival se transformou em medo de morrer por um colega de quarto. Ver a mãe só uma vez por semana também é uma dificuldade.

Foi numa dessas visitas, seis meses antes de quase derrubar o violino de tanto nervosismo, que Igor dá a notícia para sua mãe: Mãe, eu estou tendo aulas de violino.

Dona Jussara, numa mistura de descrença e orgulho não consegue entender: Como meu filho, neste lugar onde te maltratam, onde te humilham, podem te dar aulas de violino? As lágrimas nos olhos de Igor faz sua mãe se lembrar que apesar de tudo o que ele já sofreu ainda é uma criança, e ainda tem muito pela frente.

Igor olha para o professor e interrompe o Si Bemol que executava no momento exato do corte.

Olha para as atrizes e como em todos os dias e apesar de já ter ouvido a mesma piada várias vezes nos ensaios e apresentações, ele ri muito. Depois se lembra de como foram suas primeiras aulas, de quando ficou sabendo que iria tocar fazendo a trilha sonora de uma peça de teatro.

Está em silêncio aguardando a próxima deixa para tocar. Lembra que não dormiu de tanta emoção na véspera da primeira saída da unidade de internação para tocar em uma biblioteca acompanhando o grupo de teatro. Tão concentrado estava em suas lembranças que quase atrasa o ataque do violino na hora certa. O professor olha com reprovação e Igor se enche de orgulho. Orgulho por saber que esse olhar é um sinal de respeito, que está sendo tratado como músico e não como bandido.

Hoje Igor está mais nervoso do que nunca. Saiu na van com outros cinco colegas de orquestra e mais as atrizes da companhia de teatro para a vigésima apresentação.

Olha o mundo pela janela, as pessoas indo para o trabalho e as crianças para a escola. Igor vai para o futuro. A mão segue suando. Na última música, Igor já não enxerga a partitura, as lágrimas atrapalham a visão, mas ele não pode parar de tocar, sabe a música de cor. Fim.

O som dos aplausos se confunde com a visão turva pelas lágrimas e nervosismo.

De repente, uma surpresa. Dona Jussara agradece o maior presente que poderia receber esse ano. Com um abraço que quase quebra o violino na mão de Igor, ela mostra pra ele que faltará no trabalho quantas vezes for preciso para vê-lo tocar violino.

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*A Cia Burlesca é uma companhia de teatro político do Distrito Federal.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.

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Edição: Flávia Quirino