O Capital se desenvolve quando nega à população o direito à saúde, educação, cultura, terra...
Apesar do sol, fazia frio. O inverno antecipado e rigoroso no mês de maio anunciou uma verdadeira tragédia, que Lina pressentiu.
O país vive um brutal aumento da pobreza.
Muitos assistem anestesiados e hipnotizados, com olhos e ouvidos de pouca seletividade, frente à máquina de produção de falsas verdades.
A propaganda, na nossa sociedade, a propaganda capitalista, gera desejos e frustrações, medo e culpa. Os corpos cansados e entregues de mulheres, homens, famílias, crianças, mal conseguem reagir. Quando cria o desejo radical de consumo de mercadorias desnecessárias e inacessíveis, por exemplo, o capitalismo controla os corpos e se alimenta das frustrações.
Não só disso. O Capital também se desenvolve favoravelmente quando nega à população o direito à saúde, educação, cultura, arte, terra, trabalho, reconhecimento, segurança.
Após ter saído do mapa da fome, em alguns anos de desgoverno, o Brasil retornou ao mapa exibindo, em 2022, índices de fome que superam a média global.
Pois no início daquela tarde, aglomeraram-se algumas dezenas de pessoas em profundo silêncio, formando uma roda bem fechada. Foi dita uma palavra:
- “Morreu”!
Lina caiu, aos prantos. As mulheres foram as primeiras a abraçar e acolher a dor de Lina.
Não foi dito se era criança, idoso, mulher, índio, sem terra, negro ou travesti. Tiro? Faca? Câmara de gás improvisada em carro pela polícia? Frio? Ou fome?
:: ONU alerta para níveis recordes de fome ::
As perseguições eram uma constante, racismo, machismo, xenofobia, transfobia, ódio de classe e a todo tempo crescia a ganância das grandes empresas que exploravam os trabalhadores.
As lágrimas escorriam pelo rosto de Lina; ela fechou os olhos, abriu os braços, respirou fundo e virou a cabeça para o sol.
Durante os próximos minutos, as nuvens se movimentaram rapidamente, o céu se pintou de todas as cores e o vento bateu gritando tão forte, levantando tantas folhas e fazendo reviver tantas almas que o curto tempo transcorreu como se passassem centenas de anos.
Os pensamentos levaram de volta ao passado. Os mortos nas lutas se fizeram sentir ali presentes. De um a um foram ouvidos os seus nomes, que ecoavam uma, duas, três vezes.
O silêncio inicial, acolhedor do medo e da dor de Lina, que inicialmente denunciava uma apatia geral, se transmutou. Fez com que todes relembrassem o verdadeiro sentido de estar ali, lutando por seus direitos. E percebessem em suas próprias vidas, histórias não contadas de sangue, suor e luta.
Até a violência quando batia naqueles corpos virava coragem para lutar por uma vida digna e mais justa e amorosa, com terra e trabalho para todos. Como estavam juntos, aqueles corações rebeldes encontravam forças vindas das sementes crioulas, das danças e canções populares, da solidariedade. A coragem havia dominado o espírito daquela gente para extrair, das energias da terra, da água, do fogo e do ar, a força necessária para a transformação.
– “E a morte”?
– “Poderia ter sido evitada com um abraço, pão, café quente, abrigo e solidariedade”, disse Lina.
Para isso, só mudando toda uma estrutura de desigualdade política, econômica e social, aceitar diferenças, produzir para todos, distribuir riquezas, cuidar das pessoas, promover o amor, o conhecimento e a alegria de corpos dançantes, valorizar a vida.
Quais seriam os alimentos de um novo projeto de sociedade? E você, tem fome de quê?
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*Ju Amoretti é cientista social, psicóloga, pesquisadora de mulheres, direitos humanos e pensamento social latino-americano e, agente cultural no DF.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino