Distrito Federal

Descaso

Entenda por que a assistência social está tão caótica no Distrito Federal

Falta de servidores, estrutura precária e aumento da miséria explicam situação

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Fila na unidade do CRAS no Itapoã: fila para atendimento no CRAS é de cerca de 200 mil pessoas no Distrito Federal atualmente - Reprodução/TV Globo

Cenas lamentáveis de pessoas passando a madrugada em filas para serem atendidas em unidades do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) do Distrito Federal dominam o noticiário local nas últimas semanas.

Unidade pública de assistência social, o CRAS se destina ao atendimento de famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade e risco social. Entre os serviços mais demandados pela população, está a inscrição ou atualização no Cadastro Único (CadÚnico), que é a porta de entrada para o recebimento de benefícios sociais, como Auxílio Brasil, cartão Prato Cheio e outros.  

O caos que se viu em CRAS de diferentes regiões administrativas da capital tem algumas explicações. Primeiro, a demanda de fato aumentou exponencialmente nos últimos anos, em meio à crise econômica decorrente da pandemia, que arrastou ainda mais gente para uma situação de miséria e fome.

Ao mesmo tempo, ao buscarem a assistência social, essas pessoas em situação de vulnerabilidade encontraram um sistema despreparado, com pouco mais de um terço do número de servidores necessários e uma estrutura física totalmente inadequada e insuficiente para atender o público com dignidade.

A seguir, o Brasil de Fato DF faz um levantamento sobre os principais problemas da política de assistência social que culminaram na realidade atual de abandono e descaso.   

Aumento da miséria

As consequências da pandemia aprofundaram os problemas sociais do país. Em 2022, mais da metade da população brasileira (58,7%) vive com algum tipo de insegurança alimentar.

O número de pessoas passando fome passou de 19 milhões para 33,1 milhões de pessoas em pouco mais de um ano, de acordo com dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). No mundo real, o Brasil regrediu para um patamar de insegurança alimentar equivalente ao da década de 1990.

:: Central do Brasil: mais de 33 milhões de brasileiros estão passando fome ::

Embora o levantamento não tenha informado os dados por estado, no Centro-Oeste cerca de 12,9% dos domicílios estão em situação severa de insegurança alimentar, ou seja, literalmente as famílias não tem o que comer.

No DF, isso representa algo em torno de 388 mil pessoas. Se for considerado o contingente de quem está com algum grau de insegurança alimentar (leve, moderado ou grave), esse número chega a mais de 1,79 milhão de habitantes na capital do país, cerca de 59,5% da população. 

Esse cenário fez pressão sobre a política de assistência social. A fila de espera para atendimento nos CRAS cresceu 278% entre 2019 e 2021, segundo dados levantados pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do DF (CLDF), com 185.139 aguardando atendimento em outubro de 2021.

Mas a própria Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) do governo do DF (GDF) reconhece haver cerca de 202 mil pessoas na fila atualmente.

Falta de servidores

A estrutura da Sedes está completamente sucateada pela falta de pessoal. Apesar de cerca de 800 servidores terem sido nomeados nos últimos dois anos, a pasta trabalha atualmente com apenas 37% do número de funcionários necessários.

Segundo dados disponíveis no Portal da Transparência da Secretaria de Economia, a Sedes possui 1.797 servidores ativos em seu quadro, e um total de 3.465 cargos vagos. 


Atualmente, a Sedes conta com 37% do número de servidores necessários. São 1,7 mil servidores, quando o número necessário seria de 5,5 mil / Reprodução

"A assistência social foi esquecida há muito tempo. Por mais que tenha tido alguns esforços, ainda está longe do que precisa ser feito", aponta Natalícia Santana, diretora do Sindicato dos Servidores da Assistência Social e Cultural do GDF (Sindsasc).

Na última quinta-feira (9), a categoria fez uma paralisação nos atendimentos para denunciar o descaso. "Não tem diálogo algum com os servidores, uma intransigência grande", acrescenta.

De 750 servidores que poderiam ser nomeados nesse ano de 2022, conforme aprovado na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), apenas 58 foram nomeados, informa o sindicato. "Ou seja, tem necessidade, orçamento, aprovados aptos a trabalharem. Mas a secretaria não nomeia", aponta Natalícia.

A categoria tem propostas que podem ajudar a mitigar o problema da incapacidade de atendimento da demanda. Além da nomeação de novos servidores, o que só pode ser feito até o dia 1º de julho, por força da legislação eleitoral, a pasta pode aumentar a carga horária de mais de 700 servidores de 30 para 40 hora semanais.

"Normalmente, cada atendimento dura cerca de uma hora. São 736 servidores que pediram para aumentar a carga horária. Seriam 7.360 horas a mais de trabalho por semana, ou seja, mais de 7 mil atendimentos semanais que podem ser resolvidos imediatamente. Basta apenas a edição de uma portaria", explica.

O sindicato também sugere regularizar o cargo de auxiliar em assistência social para que esses servidores também passem a fazer o cadastro no CadÚnico e ajudar a desafogar a fila. Seriam cerca de 180 funcionários aptos de forma imediata.

Da parte da Sedes, as medidas tomadas nas últimas semanas foram a retomada do atendimento sem agendamento prévio nos 29 Cras da capital e a realização de mutirões aos sábados. Mesmo assim, não houve redução muito significativa das filas desde então. 

A pasta também publicou edital para seleção de organizações da sociedade civil (OSCs) que vão reforçar esses serviços. No entanto, a previsão é que o processo de seleção seja concluído somente em agosto. A entidade vencedora do certame vai instalar 14 novos pontos de atendimento exclusivo para esse serviço em regiões de maior vulnerabilidade do DF, com a promessa de ampliar o trabalho já executado pelas unidades de assistência social locais.

Para o Sindsasc, o serviço realizado pelas OSCs costuma ser de pior qualidade do que os realizados pelos servidores concursados, que são mais bem treinados para o trabalho, o que muitas vezes requer uma revisão das análises feitas de forma inadequada, atrasando justamente a redução das filas pretendida. 

Estrutura precária

Outra situação denunciada pelos servidores da assistência social, que impacta nos atendimentos, é a falta de estrutura e condições de trabalho na maioria das unidades da Sedes.

:: Servidores denunciam precarização e abandono do Creas em São Sebastião ::

No Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de São Sebastião, por exemplo, o espaço de atendimento é mínimo entre os funcionários. Essa unidade atende pessoas vítimas de violência e diversas formas de violação de direitos.


No CREAS de São Sebastião, que atende vítimas de violências e violações de direitos, não há privacidade para o atendimento de usuários / Sindsasc/DF

"Os servidores tem cerca de um metro quadrado cada um e os usuários são atendidos na frente de todos sem a mínima privacidade para relatar sua situação de vulnerabilidade. Isso expõe os usuários a situação vexatória, o que vai de encontro ao previsto no Sistema Único de Assistência Social (SUAS)", argumenta Natalícia Santana, diretora do Sindsasc.

Falta de espaço, de mobiliário adequado, equipamentos eletrônicos defasados, falta de água e até presença de animais peçonhentos também fazem parte da rotina do serviço de assistência social no DF, segundo fotos divulgadas pelo próprio sindicato dos servidores que atuam na Sedes.

No CRAS Núcleo Bandeirante, um banco de madeira improvisado é utilizado por servidores e usuários. No CRAS da Candangolândia, a parede de uma das salas está parcialmente despedaçada. Banheiros no CRAS da Ceilândia estão parte da estrutura interditada.


Banco de madeira improvisado no CRAS Núcleo Bandeirante para receber usuários da assistência social / Sindsasc/DF

No CRAS da Candangolândia, a parede de uma das salas está parcialmente despedaçada. Banheiros no CRAS da Ceilândia estão parte da estrutura interditada.


Escorpiões são encontrados com frequência no CRAS do Itapoã, o que também ocorre em diversas outras unidades, denuncia sindicato / Sindsasc/DF

Os servidores ainda denunciam a presença de escorpiões, baratas, ratos, e até falta d'água em algumas unidades. "Toda semana costuma faltar água em alguma unidade, por causa da estrutura precária de caixas d'água e tubulações", relata a sindicalista.   

A reportagem procurou a Sedes para pedir uma manifestação sobre a situação de atendimento nas unidades de assistência social, bem como atualizar as medidas para redução da fila de espera, porém, não houve retorno até o momento.

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Edição: Flávia Quirino