As últimas semanas marcaram uma forte investida contra o direito legal ao aborto no país, capitaneada por autoridades públicas, instituições e segmentos conservadores.
O caso da menina de 11 anos grávida, vítima de estupro, que foi mantida em um abrigo em Santa Catarina por vários dias para evitar que fizesse um aborto legal, comprova que os obstáculos para a garantia de um direito previsto desde 1940 ainda são imensos no país. A história veio à público após uma reportagem do Portal Catarinas e The Intercept Brasil e chocou a população.
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Há mais de 80 anos, o aborto é considerado legal no Brasil quando a gravidez é resultado de estupro ou põe em risco a vida da gestante. Além disso, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a permitir a interrupção da gestação em caso de feto com anencefalia, ou seja, não possuir cérebro.
No Distrito Federal, atualmente, o Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB) é a unidade referência para realizar o procedimento de aborto, em todos os três casos previstos em lei.
Em 2021, foram feitas 69 interrupções gestacionais e, até o mês de maio deste ano, foram realizados 45 procedimentos, segundo dados da Secretaria de Saúde do DF (SES-DF). A pasta não especificou, no entanto, quantos desses procedimentos foram realizados em crianças e adolescentes.
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Porta aberta
Quando a gravidez indesejada é fruto de um crime de violência sexual, o Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL) é o único no DF e Entorno que oferece acesso de meninas e mulheres ao procedimento, de forma gratuita, sigilosa e sem qualquer tipo de barreira. A equipe é composta por três médicas ginecologistas, duas psicólogas e uma assistente social. Os demais casos previstos na legislação são avaliados e realizados pelo Setor de Alto Risco do hospital.
"A pessoa que quiser ser atendida no programa não precisa de encaminhamento, nem ter feito Boletim de Ocorrência. É um atendimento de porta aberta, basta chegar ao programa que será acolhida de forma imediata, sem julgamentos e com foco no seu bem-estar. Aqui a palavra dela vai valer", explica Shyrlene Brandão, psicóloga do PIGL. Nestes casos, é importante que a paciente tenha confirmação do diagnóstico de gravidez, seja por exame de sangue, urina ou ecografia.
Não existe nem sequer necessidade de agendamento. A equipe recebe e acolhe qualquer vítima que se apresentar, mas há canais para contato prévio, incluindo um número exclusivo para WhatsApp (61-2017-1624), além de email ([email protected]) e telefone fixo (61-2017-1600 ramal 7434). O programa atende de segunda à sexta-feira (exceto feriados), de 8h às 12h e das 14h às 18h.
O PIGL é um espaço multidisciplinar que oferece não apenas o atendimento em saúde, mas também apoio psicológico para que a vítima consiga lidar com a situação vivida. "É um espaço de cuidado. O aborto é um cuidado, porque seguir com a gestação, para muitas dessas mulheres ou meninas, é uma outra violência", aponta Brandão.
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Possibilidades
Além da realização do procedimento de interrupção da gestação, o programa apoia e oferece o suporte para aquelas mulheres que eventualmente desejam prosseguir com a gravidez e realizar, por exemplo, o processo de encaminhamento para adoção legal do bebê.
Foi o caso recente de uma atriz que teve sua vida privada exposta na imprensa após a decisão de entrega voluntária para a adoção, conforme prevê a legislação, depois de prosseguir com uma gravidez fruto de um estupro.
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Tanto no caso da menina catarinense de apenas 11 quanto o da atriz, esta com 21 anos, a misoginia e a tentativa de controle sobre o corpo da mulher falaram muito mais alto do que a proteção e bem-estar das vítimas.
Em dezembro do ano passado, a Secretaria de Saúde do DF publicou a cartilha "Recomendações Técnicas sobre Entrega Legal e Humanizada de Bebê para Adoção", que oferece informações detalhadas sobre como funciona o processo na capital do país. O documento tem o objetivo de desconstruir o preconceito envolto na entrega de bebê para adoção e reforça sua legalidade, além de orientar as unidades de saúde a como tratarem corretamente esses casos.
Dados
Em maio, o Brasil de Fato DF publicou uma matéria sobre os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no DF. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP), nos três primeiros meses de 2022, foram registradas 130 ocorrências de estupro, 81 dos registros foram de vítimas vulneráveis, ou seja, crianças e adolescentes de até 14 anos, contabilizando 100 vítimas. A diferença entre a quantidade de ocorrências e o total de vítimas se da pelo fato de que em 17 ocorrências houve mais de uma vítima.
O relatório mostra que 82,2% dos casos registrados, entre janeiro e março deste ano, de violência sexual contra crianças e adolescentes aconteceram no ambiente familiar.
Vergonha e medo
Às mulheres e meninas que sofrem violência sexual, a recomendação de especialistas é que busquem o quanto antes o serviço de saúde, para tomar medicações adequadas, incluindo contraceptivo para evitar uma gravidez indesejada.
"Infelizmente, muitas dessas vítimas não procuram o atendimento após a violência sofrida porque ficam com nojo de si mesma, com vergonha de serem culpabilizadas, que é o que ocorre na sociedade machista. Daí que, em muitos casos, elas só procuram o serviço de saúde quando descobrem que estão grávidas", afirma a psicóloga Shyrlene Brandão.
Do outro lado, os profissionais de saúde precisam estar corretamente treinados para acolher e encaminhar essas vítimas aos serviços especializados.
No DF, a rede pública de saúde possui ambulatórios dos Centros de Especialidade para Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual, Familiar e Doméstica (Cepavs), que funcionam de segunda à sexta, das 8h às 18h, em unidades espalhadas em todas as regiões da capital.
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Edição: Flávia Quirino