Defender os direitos de crianças e adolescentes é combater a militarização nas escolas
Quantas vezes já ouvimos que "todos somos iguais, mas alguns são mais iguais que outros"?
A Constituição Federal aponta que todas as pessoas devem ser tratadas de forma igual, sem distinção de cor, origem ou classe social. É o que propagam, também, alguns valores religiosos. Mas todos sabemos que essa é uma teoria que se enverga para não se tornar prática.
A frase era para soar como uma ironia com a realidade da obtenção de privilégios, mas infelizmente representa uma realidade triste que tem se tornado mais grave nos últimos anos. E quando aplicamos essa realidade à vida de crianças e adolescentes, a desigualdade ganha requintes de crueldade.
Como exemplo, podemos falar do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que aniversaria neste 13 de julho. Sancionado em 1990, o ECA representou grande avanço para os direitos dos e das menores de idade, produto do acúmulo de segmentos que se dedicam à defesa de crianças e adolescentes.
Hoje, 32 anos depois, o Brasil vive um dos momentos mais tenebrosos de sua história, sofrendo os desmandos de um governo tão autoritário quanto incompetente, que não apenas se exime de sua responsabilidade de proteger as crianças e adolescentes brasileiros, como contribui de forma decisiva para tornar sua vida e seu futuro piores.
O ECA se choca frontalmente contra a ideologia desse governo, presente nos seus diversos programas e projetos. Um deles é o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), a militarização de escolas públicas brasileiras.
Militarização
O Pecim foi bandeira de campanha do presidente genocida, que nunca escondeu seu desapreço pela educação, pela cultura e pelos valores democráticos. O programa vem sendo implementado a despeito das fartas deficiências que apresenta, sendo alvo de críticas de especialistas, estudiosos, lutadores sociais da área da educação e da defesa dos direitos de crianças e adolescentes, bem como da própria Justiça que, em diversos estados brasileiros – inclusive no DF –, questiona a legitimidade e a legalidade do projeto.
Uma das principais razões para tantos questionamentos é justamente a afronta que o programa representa ao ECA. Em alguns meses de aplicação, é muito fácil notar que são diversos os artigos do Estatuto contrariados pela militarização de escolas públicas.
Qualquer direito à diversidade e de exercício da individualidade – seja de opinião, de crença, de vestimenta, de relacionamento – fica comprometido e até ameaçado pela lógica de quartelização das escolas. A busca por homogeneização a partir da intimidação impõe a crianças e adolescentes o silêncio e a obediência servil, numa fase da vida onde afirmar sua personalidade é fundamental para o desenvolvimento humano.
Evidentemente que os estudantes expostos a essa lógica são sobretudo aqueles em situação de vulnerabilidade social. As crianças e adolescentes que vêm sofrendo com intimidações, repressão e ameaças são aquelas que estão em escolas da periferia, e que são vítimas da marginalização e da exclusão desde que nasceram.
A sociedade vê a militarização como forma de controle social. As comunidades, muitas vezes, acreditam que será uma forma de fortalecer a disciplina. Mas, na prática, o que se vê é apenas o cerceamento de direitos e o comprometimento da atividade pedagógica.
Direitos atropelados
O direito à liberdade de opinião e expressão e de participação na vida política, garantido no artigo 16; e o artigo 53, que garante o direito de organização e de participação em entidades estudantis, já foram muitas vezes afrontados nesses meses de experiência de militarização.
A participação em manifestações, por exemplo, tem sido tratada como falta disciplinar. Foi o que se viu no CED 01 da Estrutural, escola que se tornou emblemática do fracasso do projeto de militarização no DF. A mãe de um ex-aluno da escola que, antes, havia apoiado a militarização, percebeu na prática concreta que o projeto é um engodo. Ela transferiu seu filho para outra escola, depois de ele ter sido um dos estudantes a sofrerem repressão e ameaças depois de um protesto contra a exoneração da vice-diretora da escola.
Na ocasião, uma emissora de TV veiculou vídeo gravado por um estudante, registrando os gritos do militar que exercia a função de monitor disciplinar: “eu te arrebento”, “abaixa a cabeça porque estou mandando”, “baixa a bola”.
A ação indigesta do militar contraria nitidamente o artigo 17 do ECA, que assegura o direito ao respeito: "O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais".
Na prática, o livre exercício dessas individualidades é caracterizado como falta disciplinar e pode acarretar punições, algumas delas expressamente proibidas no artigo 18 do ECA, que versa sobre o direito que crianças e adolescentes têm de serem educados ou cuidados livres de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante. Por tratamento cruel ou degradante, entende-se conduta que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize.
Adiante, o artigo 58 do ECA afirma: "No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura".
Em novembro de 2021, foi uma atividade pedagógica referente ao Dia da Consciência Negra que deu início a uma série de desrespeitos flagrantes ao ECA, à liberdade de cátedra e à gestão democrática no CED 01 da Estrutural, incluindo a invasão da escola por um deputado bolsonarista e a exposição pública e consequente exoneração da vice-diretora da escola.
Defender o ECA e reverter a militarização
Ao passo que não há investimento em educação – ao contrário, o que há é a retirada de recursos –, a militarização vem como uma falsa resposta às expectativas das famílias, gerando efeitos perversos para a escola, para as comunidades, para os profissionais de educação e, principalmente, para crianças e adolescentes.
A militarização está a serviço de um projeto ideológico fundamentalista e discriminatório, que entende que o lugar das crianças, sobretudo as em situação de vulnerabilidade, é o da servidão e da subordinação a uma ordem que diariamente as agride e as exclui.
A reflexão e a ação para buscar seu desenvolvimento pessoal e sua autonomia são vistos como afronta e, portanto, são reprimidos. As vozes dessas crianças e adolescentes são silenciadas, enquanto aqueles que frequentam regiões ricas ou de classe média seguem seu curso sem precisar lidar com carências materiais nem com esse tipo de "disciplinamento".
Hoje, aos 32 anos do ECA, defender os direitos de crianças e adolescentes passa necessariamente por combater a militarização das escolas públicas.
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*Luciana Custódio é professora da rede pública de ensino do DF e dirigente do Sinpro-DF
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino