Distrito Federal

Julho das Pretas

"As utopias das nossas mais velhas se materializaram em nós", diz idealizadora do Latinidades

Há 15 anos, Festival congrega mulheres negras do DF e de várias regiões do país e é o maior do gênero na América Latina

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
"Mulheres Negras - todas as alternativas passam por nós" esse foi o tema do Festival que homenageou 50 mulheres negras - Foto: Ricardo Jataum

Ao longo da década, o Festival Internacional da Mulher Negra Afrolatina e Caribenha, Latinidades, se tornou um dos eventos mais importantes protagonizados por mulheres negras em toda a América Latina. Após dois anos de atividades presenciais suspensas, em razão da pandemia, o Festival retomou ao seu formato original e congregou, entre os dias 22 a 24 de julho, centenas de mulheres negras e não negras de várias regiões do país e da própria região latino-americana.

Segundo Jaqueline Fernandes, produtora, gestora de impactos sociais e políticas afirmativas na cultura e uma das idealizadoras do Festival, a ideia de produzir o Latinidades começou no fim do ano de 2007.

"Surge de um incômodo meu e da minha então sócia, Chaia Dechen, de sermos duas mulheres negras artistas e produtoras culturais periféricas vivendo no Distrito Federal e não conseguir visualizar na cena da cidade, respeito e inclusão das produções artísticas e intelectuais das mulheres negras. Num primeiro momento esse incômodo nos levou a criar uma produtora. A primeira que a gente tem notícia no DF registrada por mulheres negras e periféricas para atuar com cultura negra", conta.

Jaqueline conta que criou a Griô Produções com o objetivo de qualificar os trabalhos de artistas e trabalhadores da cultura negra, pois acreditavam que era este o entrave para que essas produções não circulassem na Capital. Porém, à medida que o tempo passou descobriram que não era somente a qualificação que impedia.

"O racismo sistêmico que se reproduz em todos os lugares na sociedade, também está na cadeia produtiva da cultura. Ao percebermos isso, caiu a ficha de que se esses espaços não contratam mulheres negras, não nos valoriza e nem reconhece os nossos saberes, teríamos que criar nossa própria plataforma para que fossemos respeitadas. Assim surge o Latinidades, como  uma ação da Griô Produções para reconhecer, valorizar, visibilizar e formar público para as produções de mulheres negras de forma transversal", relembra.

Ao rememorar o início do Festival, Jaqueline conta que inicialmente era um incômodo sobre a capital do país, porém ao saberem do Festival, mulheres de outros Estados do Brasil e países do mundo relatam as mesmas inquietações. 

"O festival vai crescendo e se internacionalizando a partir de uma rede ampla de mulheres negras que estão trabalhando em diferentes frentes em toda a América Latina, África e outros países da diáspora negra. Hoje o Latinidades foca em mulheres negras latino americanas e caribenhas, mas a gente já teve a participação de países da África, América do Norte e Europa", diz. 

Um dos motivos para a criação do Festival que Jaqueline faz questão de destacar é o fato de Brasília ser um território com população negra de 58% e não ser reconhecida assim. 

"O imaginário sobre a nossa cidade remete as pessoas sobre o fato de que aqui é uma capital administrativa do poder enquanto a população negra é potente e maioria. Contribui economicamente, intelectualmente e com força de trabalho para a sociedade e não existe reconhecimento, ao contrário, a população negra tem os piores índices", aponta. 


Jaqueline Fernandes, uma das idealizadoras do Festival: Latinidades surgiu a partir de incômodo / Foto: Ricardo Jataum

A história do Latinidades 

Em 2009, o festival alcançou o formato que possui atualmente com atividades formativas, shows e espaços de multilinguagens. Em 15 anos, muitos momentos marcaram o público que esteve presente e também a produção. Aconteceram desde a união de pessoas trabalhando gratuitamente para que a celebração não deixasse de acontecer até a reformulação do festival para o formato virtual para que a cadeia cultural, que em maioria tiveram seus trabalhos paralisados durante a Pandemia, pudessem trabalhar e garantir sustento. 

"O ano de 2020 marca a revolução tecnológica do Latinidades e um momento de muita tensão e consciência da nossa responsabilidade, pois não poderíamos deixar de fazer o evento naquele ano. E tínhamos que fazê-lo pensando em como isso poderia gerar renda para pessoas negras naquele momento. Não à toa, o tema daquela edição foi Utopias Negras apontando para a projeção de mundos a partir das vivências das mulheres negras", relembra Jaqueline Fernandes. 

Lideranças mundiais já passaram pela arena do Festival Latinidades, como Patrícia Hills Collins, Paulina Chiziane, escritora moçambicana, o ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva e também ativista e feminista negra Angela Davis, em 2014, que compartilhou parte de sua trajetória política, ampliando ainda mais o espectro do festival incentivando caravanas de todo o país a participarem da celebração.

“Bastão pesado”


Evento contou com a participação de Epsy Campbell, ex-vice-presidenta da Costa Rica. / Foto: Ricardo Jataum

Na edição deste ano, o painel de abertura "Mulheres negras e indígenas – todas as alternativas passam por nós!" contou com a participação especial da ativista política e ex-vice-presidenta da Costa Rica, Epsy Campbell.

"Quero agradecer profundamente ao Latinidades por essa celebração. O Brasil num momento importante foi responsável por impulsionar o movimento das mulheres negras afrolatinas americanas e Caribenhas. Agradeço ainda, as nossas ancestrais que desafiaram todos os obstáculos que tiveram à frente. É pesado o bastão de ser a primeira", disse Epsy, que fez um chamado às mulheres negras para a responsabilidade de entregar uma vida mais fácil para os que hão de vir para que não tenham que passar pelos obstáculos atuais. 

"É nossa obrigação entregar uma montanha mais baixa para as próximas gerações. E por isso celebro de coração e com todo o corpo o fato de estarmos aqui no Festival",  pontuou.

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“Rosas em vida”

Epsy Campbell foi também uma das 50 homenageadas do festival deste ano em reconhecimento da trajetória na luta contra o racismo e machismo sistêmicos. Junto a ela estavam nomes como o da filósofa, escritora e ativista, Sueli Carneiro, e da ativista política, sindicalista e presidente de honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), Creuza Maria Oliveira.

"Eu senti uma emoção grande e chorei. Porque a fala de cada mulher daquela representa a luta das mulheres negras no Brasil desde quando nós fomos traficados da África para cá em péssimas condições. A gente se vê ainda resistindo e lutando por coisas que não deveríamos mais estar vivenciando mesmo tendo construído cada pedaço desse país", disse Creuza. 

Sueli Carneiro também comentou sobre a homenagem. “Recebo essa homenagem com humildade, orgulho e emoção por estarmos juntas ainda. Por sermos mulheres que confiam e resistem e continuam nessa luta por igualdade de direitos, oportunidades e justiça social. Contra o genocídio e o feminicidio em prol de uma sociedade justa e igualitária que é o sentido da nossa luta", enfatizou.

Também receberam a homenagem presencialmente Beth de Oxum, Mãe Baiana de Oyá, Mãe Neide Oyá D’Ogum, Nilcemar Nogueira, Lydia Garcia, Maria Luiza Júnior, Valdecir Nascimento, entre outras.

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Formativas 

Nos dias de Latinidades foram pelo menos 10 atividades formativas sobre diferentes assuntos, audiovisual, masculinidades, estética, entre outros temas com a participação de mulheres negras de todas as partes do país.

"Tentei mostrar como as mulheres são as gestoras de movimentos coletivos pretos que modificaram a história do mundo, e não somente a história das populações pretas, ao trazer uma outra ideia de política, empreendedorismo, tecnologia e visão de futuro mesmo. Um dos meus projetos é a imaginação negra radical. Considero que imaginação negra é toda prefiguração que nasce dentro de uma mente melanizada saudável. Essa prefiguração vai desembocar no ato de viver de forma absoluta a experiência da vida, de forma plena", destacou Nathalia Grilo, uma das participantes da mesa "Mulheres Negras, Projetos de mundo”.

Shows

Além das formativas, o festival ofereceu nos três dias de programação shows gratuitos. Dentre as apresentações, o público conferiu neste ano, a rapper e cantora Drik Barbosa e também a residente DJ Donna.

O show de Drik, no primeiro dia do festival, trouxe ao Latinidades um pouco da trajetória e as faces musicais da artista. O público ouviu desde os lançamentos até o álbum "Drik Barbosa", que foi lançado em 2019. "A gente formatou um show para as pessoas realmente me conhecerem e se identificarem com a minha mensagem e com a minha arte. Apresentei minhas canções em um festival que me representa e me potencializa como mulher negra e artista", contou. 

DJ Donna, que participa do Festival há nove anos, revela que por conta da celebração passou a se reconhecer como mulher preta e se enriqueceu musicalmente.  

"O festival tem uma curadoria incrível e conteúdos super importantes nas formativas. Sempre me desafia a trazer o melhor da música preta na discotecagem. Nestes 15 anos de história vivemos momentos emocionantes de união e força com mulheres do Brasil e do Mundo", relatou DJ Donna.  

A 15° edição ofereceu também, desfiles de moda, espaço geek, feira gastronômica, e os espaços do bem viver e o literário.

O ambiente de literatura do Latinidades que leva o nome de Maria Firmina dos Reis homenageou este ano as escritoras Cristiane Sobral e Nanda Fer Pimenta e lançou livros e publicações sobre mulheres negras. Como o livro "Afrofunk e a Ciência do Rebolado", de Taisa Machado, que discorre sobre princípios da Ciência do Rebolado, método desenvolvido por ela, a partir de técnicas para soltar os quadris e explorar os movimentos da pelve. 

"Esta é a primeira vez que tive a oportunidade de falar sobre o livro em um espaço de lançamentos, pois ele nasceu durante a pandemia. É muito inspirador ter a certeza de que um espaço tão potente abrace mulheres funkeiras. O funk é cultura preta, potente e revolucionária e precisa ter seu protagonismo garantido nesses espaços", destaca Taisa.

15 anos de existência 

O Latinidades deste ano comemorou 15 anos de existência e os 30 anos do 1º Encontro de Mulheres Afro Latino Americanas e Afro Caribenhas realizado em Santo Domingo, na República Dominicana no ano de 1992, que instituiu o 25 de julho como o Dia da Mulher Negra latino-americana e caribenha, um marco na luta das mulheres negras por reconhecimento e contra o racismo e as  opressões de gênero.

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"A gente ainda vive em desigualdade. Vemos nossas mulheres morrendo por doenças tratáveis por falta de políticas públicas de saúde. Contribuímos para o crescimento econômico deste país, mas estamos sempre com o resto. Estamos nas piores condições de emprego, saúde e educação. Um governo que nos trata como lixo. O Festival neste ano foi importantíssimo para conscientizar que precisamos eleger nossas mulheres negras. Temos que eleger um Senado e uma Câmara representativa. Incluindo o público LGBTQIAP+, indígenas e a juventude. É na eleição que a gente decide saúde, educação, moradia e tudo que permeia a existência", reflete Creuza. 

Jaqueline Fernandes conclui dizendo que o Latinidades é a materialização de um sonho das mulheres que antecederam essa geração.  

"Pensando no bastão que pegamos de sermos o sonho das nossas ancestrais, nós mulheres negras que atuamos hoje, estamos dando continuidade a uma luta ancestral histórica da qual a gente não pode fugir. O Latinidades é fruto dessa luta. As utopias das nossas mais velhas se materializaram em nós", termina.

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Edição: Flávia Quirino