A cultura é uma tecnologia social de memória que nos constitui enquanto humanos e povo
Em memória de Micael
Ao ser convidado para escrever sobre cultura para a coluna do Inesc no Brasil de Fato DF fiquei me perguntando qual seria, de fato, a minha contribuição com este texto. Vivenciamos um dos piores momentos para a cultura na história recente do Brasil, e aqui não me refiro à classe artística ou ao fomento, duramente alcançado como projeto emergencial de contenção de danos diante da pandemia da Covid-19, mas ao cerne do fazer cultural no país.
Há alguns anos vivemos uma realidade política que não só despreza a potência cultural enquanto economia criativa, mas também encara como uma atividade espúria a narrativa de valorização da diversidade étnica e cultural do país. Essa valorização por si só, neste governo, é considerada uma ação de combate e de rebeldia.
Isso porque, na medida em que nos dedicamos a evidenciar a força dessa diversidade, também trabalhamos conceitos de justiça social e democracia plena, estimulando assim a disputa por narrativas e espaços de poder. Isso é visto por grupos hegemônicos que sempre estiveram no poder como um levante contra sua permanência e manutenção, estimulando ataques diversos contra nós. Entre 2011 e 2021 houve um recuo de 46,8% no orçamento federal nas políticas de fomento para cultura, de acordo com um levantamento do jornal O Globo.
A cultura é uma tecnologia social de memória que nos constitui enquanto humanos e povo, sendo ele letrado ou não, em diáspora ou não.
Assim, podemos constatar que os ataques estrategicamente realizados refletem a busca por um silenciamento, nos imputando mais uma vez a subserviência. O que eles não sabem é que somos feitos de “madeira que cupim não rói” e nossa tática de guerra encontra força no afeto e na ginga que engana o inimigo.
Se as colonizações e invasões europeias tiraram nossos instrumentos musicais, riscamos um vinil e fazemos som, pois a musicalidade nos pertence. Se as crises capitalistas nos tiraram os teatros e palcos, nos organizamos em danças urbanas, levando e elevando nosso potencial de beleza para as ruas.
Silenciamento das ruas
Uma rua em disputa e que nos força a denunciar: no Distrito Federal tentam nos tirar as ruas. Brasília e sua Lei do Silêncio desenha o absurdo: dos bares fechados aos tratores que derrubam centros culturais, das bombas de gás lacrimogêneo arremessados em batalhas de rimas nas cidades satélites aos seus cassetetes que sangram a cultura nos vagões do metrô.
Aqui vemos censuras que se materializam em atos sutis de enfraquecimento institucional ou de violência nua e crua contra o setor artístico.
No mesmo dia que recebi o convite para escrever ao Brasil de Fato, voltei pra casa de metrô. Ali prestigiei a apresentação de três B.boys que passavam o chapéu enquanto olhavam atentos se havia algum segurança por perto. Discursaram rapidamente sobre a cultura Hip Hop e sobre a alegria de ter o breaking nas próximas olimpíadas como modalidade competitiva. Só consigo imaginar que talvez tenhamos ali medalhistas, a não ser que os cassetetes os encontrem antes e interrompa o futuro das medalhas. Sejam elas olímpicas ou não.
Saí do metrô, e ao chegar em casa recebi uma mensagem pedindo contribuição financeira para Luiz Vieira, um dos poetas mais importantes e respeitados de Samambaia e do Distrito Federal. Estou falando de um ancestral vivo, um griô que está com graves problemas de saúde. A rede pública de saúde, sucateada pelo governo de Ibaneis, não oferece esse direito previsto na Constituição Federal de forma integral. Até a minha hora de dormir neste mesmo dia, infelizmente, surgiram outros tantos exemplos de dificuldade de acesso, de falta de garantia de direitos sociais como esses.
É impossível não enxergar e se indignar com um governo que deseja taxar livros enquanto flerta com o armamento da população.
Um governo que marcha para Cristo com uma réplica enorme de um revólver, mas que se silencia frente ao aumento de atentados contra casas religiosas de matriz africana.
No DF, temos um governo que se esforça na construção de viadutos, mas segue mantendo teatros fechados, praças abandonadas, e ainda trabalha para manter um transporte público que prioriza o lucro das empresas e não sua população. É importante frisar que o transporte no DF não é encarado como um direito social, mas como via de interesse e exploração: ele funciona para levar e buscar a população para seus trabalhos, mas não proporciona o acesso a outros espaços que promovem diversão, lazer e bem-estar.
Desigualdades no acesso ao FAC
No que diz respeito às políticas públicas de fomento a cultura, os valores destinados ao Fundo de Apoio à Cultura (FAC) só respeitaram o estabelecido pela Lei Complementar distrital nº 934/2017 – Lei Orgânica da Cultura (LOC) depois de muita luta e pressão da comunidade artística do DF e entorno.
Além disso, as desigualdades na distribuição dos recursos do FAC ficam ainda mais evidentes quando verificamos a localização dos entes e agentes culturais aptos a pleitear os recursos por meio de editais públicos. Eles não só estão majoritariamente no Plano Piloto, como mostra os dados do Mapa das desigualdades do Distrito Federal (gráficos abaixo), mas também representam as cidades mais embranquecidas do DF.
Apesar de todas essas constatações em um retorno para casa, também tive tempo para esperançar. Ouvi mais uma vez Dona Martinha do Coco, me lembrei do Samba da Comunidade, do retorno das atividades do Sarau Voz e Alma, das fogueiras e quadrilhas juninas ocupando as ruas, a favela, de mulheres negras e latinas ocupando o concreto do centro de Brasília. A Palco Cultura multiplicando palcos.
É importante lembrar que um dinheiro que é partilhado e circulado entre nós, desata nós.
Antes de terminar essa reflexão, lembro também de Micael. Um jovem artista do DF que fez sua passagem na última semana e não recebeu as homenagens devidas. Não foi conhecido por quem devia. Ele era ator, dançarino, poeta, filmmaker e encantou por onde passou com seu talento, sua potência, sua beleza. Micael partiu, mas está presente na vaquinha em prol da saúde do poeta, no chapéu passado nos vagões do metrô, no jovem que desiste da arte quando sua geladeira está vazia, na artista de Ceilândia esperando madrugada adentro na fila da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) com sua filha se equilibrando numa vida em malabares.
Este texto é sobre noiz e sobre a reaproximação tão urgente. Uma reaproximação pela descentralização das políticas de fomento, que encontre na diversidade e na regionalização da cultura, o que pode aquecer nosso setor.
Se A Rua Eh Noiz cabe a nós olhar quem tá na rua.
Micael, presente!
Fora Bolsonaro! Fora Ibaneis!
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* Por Markão Aborígine, rapper e educador do Inesc, com contribuições de Tâmara Jacinto, produtora cultural e consultora de comunicação do Inesc
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino