No centro do campus Darcy Ribeiro da UnB, há desses muros, dos que falam e dos que calam
As paredes falam. Os objetos inanimados deixam indícios que apontam para o passado, mas também para projetos de futuro. Deles ecoam silêncios e interdições sobre acontecimentos que são barrados em sua transmissão às novas gerações.
No centro do campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília, há desses muros, dos que falam e dos que calam. No triângulo de poucos metros formado entre a praça em frente a OCA II, a entrada do Restaurante Universitário e a quadra de esportes próxima à Faculdade de Educação, três demarcações nos contam sobre os primórdios da vida universitária.
O primeiro vértice do triângulo imaginário é a Praça Edson Luís, que além do Monumento à Cultura abriga uma placa que explica seu título: “Homenagem ao estudante Edson Luiz Souto, morto em manifestação estudantil no dia 28 de março de 1968 no Rio de Janeiro. Brasília, 29 de agosto de 1994. João Claudio Todorov. Reitor da Universidade de Brasília”.
Edson Luis Lima Souto era um estudante secundarista que, morto em ocasião da repressão à manifestação de jovens no restaurante Calabouço, tornou-se símbolo das mobilizações políticas estudantis e da repressão que recaiu sobre esse setor durante a ditadura. O assassinato suscitou levantes por todo o país, especialmente dentro dos ambientes universitários. Nessa esteira desse acontecimento, a UnB – como muitos estabelecimentos de ensino do país – viveu o ano intenso em termos de manifestações, chegando a declarar “território livre” para o campus. O dia 29 de agosto daquele ano marcaria o ápice das ações repressivas contra a universidade.
Na segunda ponta do triângulo está o mosaico com o rosto de Honestino Guimarães, nome exaltado tanto pelo seu estatuto de desaparecido político quanto por seu simbolismo como liderança das organizações de estudantes. A obra, datada de 1998, também traz inscrito em sua lateral, entre outros dizeres “Honestino, líder da resistência ao despotismo, preso, torturado e ‘desaparecido’ em 1973, simboliza a coragem de Brasília na defesa da liberdade e da justiça num dos mais tenebrosos períodos da nossa história”.
A vigilância direcionada ao então presidente da Federação dos Estudantes Universitários de Brasília (FEUB) era uma constante pelo menos desde 1966, data de sua primeira prisão. Mesmo antes de assumir a presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1969, o aluno do curso de Geologia já havia sido preso por três vezes, a última delas justamente durante a invasão do campus em 29 de agosto de 1968.
Nessa ocasião, a quadra de esportes José Maurício Honório Filho – terceiro e último ângulo do triângulo mencionado no início do texto –, foi utilizada como prisão improvisada para centenas de estudantes capturados na ação orquestrada por um conjunto de forças de segurança.
Segundo a Comissão Anísio Teixeira, o evento marcou “mais do que uma ação ‘excessiva’” dado o seu caráter, que mobilizou diferentes tropas e foi planejada com minúcia, como se vê no inquérito sobre o caso, analisado pela mesma comissão. Desde 2018, no marco dos 50 anos do acontecimento, a quadra passou a contar com um letreiro, no qual se registra que se trata de uma homenagem “Em memória dos presos políticos da UnB que há 50 anos ficaram confinados neste local em decorrência da invasão do Campus pela Ditadura Militar, em 29 de agosto de 1968”.
As três extremidades do triângulo conformam um circuito de considerável fluxo de estudantes, e contam uma história.
Nos primeiros minutos do minidocumentário A UnB e a Ditadura jovens estudantes da UnB respondem sobre seus conhecimentos acerca das invasões da ditadura à universidade, sobre quem foi Honestino Guimarães. As respostas, de maneira geral, são vagas e se contrapõem às falas de pessoas que viveram a época e que contam com detalhe sobre os acontecimentos vivenciados.
Após alguns constrangimentos por não conhecerem histórias que aparentemente deveriam, ao final do curta, atuais estudantes da instituição concordam com o que dizem os antigos e demarcam um sentido redentor do conhecimento sobre o passado, como se esse conhecimento guardasse o antídoto para a não repetição.
Para nós que estudamos História essa máxima não é aceita com tanta facilidade: vivemos, afinal, tempos de negacionismo – e negar não é sinônimo de desconhecer. Ao comentar sobre o avanço do apoio e saudosismo da ditadura no Brasil, por parte de jovens que não vivenciaram tal evento histórico, o historiador Alexandre de Sá Avelar postula que esse sentimento lhe soa mais como “frustração” de quem identifica o projeto golpista de 1964 como salvacionista do que como um déficit de conhecimento sobre o passado.
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Voltemos ao que os muros nos relatam, tratando-os como observatórios possíveis para compreender sobre essa dinâmica de lidar com o passado dentro da UnB. Percebo que as paredes nos contam para além do que se define através das ações institucionais grafadas em placas metálicas.
No espaço público, a memória é grafada também a lápis, spray, lambe ou canetão e, como a maioria das narrativas, não é uníssona. Ela é diversa, fala sobre o passado e sobre o presente, estampam o perigo negacionista, sexista, neofascista. Ao notar isso, apresentasse de forma inconteste um sentido de disputa inerente aos processos memorialísticos.
29 de agosto de 2022 e os caminhos da universidade nos contam que a disputa está colocada e que ela é formada de camadas complexas.
Observação: o texto de Alexandre de Sá Avelar citado chama-se Para falarmos de incômodos: Memória, vítima e ‘perversão historiográfica’ constante no livro História, Memória e Direitos, organizado por Sônia Meneses (2019).
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*Paula Franco é doutoranda em História pela UnB, vinculada ao Instituto Gino Germani da Universidade de Buenos Aires. É editora e colunista do site História da Ditadura e pesquisa temas ligados à justiça de transição e comissões da verdade da América Latina.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Flávia Quirino