Distrito Federal

Violência Policial

Para pesquisador, militarização é marca ideológica da violência policial no DF

Até agosto foram realizadas 28 denúncias, de acordo com informações da Comissão de Direitos Humanos da CLDF

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Sociedade é cada vez mais intolerante à violência policial - Reprodução/Da web

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 aponta uma redução de 28,2% nos registros de mortes decorrentes de intervenções policiais no Distrito Federal. Em números absolutos, somando-se casos envolvendo policiais militares e civis, foram 11 mortes em 2020 e oito em 2021.

O DF, de acordo com o anuário, detém a menor taxa de letalidade policial do país, apenas 0,3 para cada grupo de 100 mil habitantes. Entretanto, mesmo que não terminem em mortes, não são raros episódios envolvendo membros da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) em abordagens abusivas e violentas.

Muitos casos foram flagrados por testemunhas e amplamente divulgados nos veículos de comunicação. Na semana passada, uma adolescente de 16 anos, grávida e com uma criança no colo, foi derrubada e imobilizada por militares no Riacho Fundo I durante uma confusão que se formou no local após o cancelamento de um evento. Toda a ação foi filmada por pessoas no local.

A PMDF alegou que a jovem teria agido com agressividade, o que justificaria, de acordo com a corporação, “utilização da força necessária para conter a adolescente”.

Em junho deste ano policiais militares utilizaram spray de pimenta e chegaram a disparar uma arma em meio ao público que acompanhava as festividades do aniversário de 89 anos de Brazlândia. Um homem que filmava a ação violenta chegou a ser agredido com cacetete. Ele foi preso, segundo a PM, por desacato e a ação dos militares teria sido justificada porque pessoas no local teriam atirado garrafas contra os policiais.

Outros casos de agressão e abuso policial tiveram destaque este ano. Em abril policiais foram flagrados aplicando um mata-leão e desferindo socos e tapas em um motorista de aplicativo em Santa Maria; no mês anterior a vítima foi um motoboy que levou chutes de policiais militares em Samambaia; no início do ano uma moradora de São Sebastião alegou ter levado um soco na boca de um policial que entrou na casa dela sem autorização – a PM alegou à época que o sargento envolvido teria agido em legítima defesa porque a mulher teria tentado impedir a captura do marido, que, segundo a PM, trabalhava como motoboy sem habilitação.

Denúncias

As denúncias envolvendo abuso e violência policial na Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CDHCLDF) aumentaram 86,6% no DF desde 2019. Até agosto foram realizadas 28 denúncias, o mesmo número registrado em todo o ano passado. Em 2020 foram 17; e em 2019, 15 denúncias.

Em nota enviada à reportagem, a CDHCLDF informou que há uma similaridade em praticamente todas as demandas relacionadas à violência policial ao longo dos anos: "é a evidência, nos diversos casos, do uso da força e do abuso de autoridade, sendo esses nortes que guiam alguns profissionais em seus ofícios. Utilizada principalmente contra mulheres, negros e pessoas de baixa renda, a violência presente na abordagem da policial no Distrito Federal é uma realidade que deve ser lida sob a ótica da garantia dos Direitos Humanos para toda a população".

Professor e pesquisador da área de violência e segurança, Wellinton Caixeta Maciel enfatiza que a sociedade tem se tornado cada vez mais intolerante à violência policial à medida que se espera das policias um “trabalho policial mais profissional e menos militarizado”, menciona.

Para Maciel, o trabalho da polícia se equilibra entre o uso legítimo ou legitimado da força, em algumas ocasiões, e o dever de manter o bem-estar social e manter o bom relacionamento com as comunidades, sendo necessário analisar os casos além das estatísticas.

“É preciso qualificarmos que tipo de polícia tem atendido a determinadas ocorrências, onde estes profissionais atuam, suas condições de trabalho, a quais perfis de cidadãos atendem e como a postura do policial muda a depender dessas variantes nem sempre objetivas, se a formação que recebem é adequada ou não, quais seus déficits, quais os estereótipos e estigmas construídos e sustentados pelos agentes imersos na cultura institucional, a trajetória de vida e trabalho os policiais, outros fatores de ordem cultural, social, política etc”.

Violência pregressa

O pesquisador enfatiza que o comportamento violento de determinados policiais pode estar relacionado aos contextos sociais e institucionais nos quais estão inseridos, tendo eles próprios passado por violências que antecedem seu ingresso na corporação.

O treinamento ao qual são submetidos é exemplo disso. “O período de socialização cuja programação, em seus ritos de passagem, rituais simbólicos e pragmáticos são retroalimentados por sessões de força, com reforço de estereótipos de bravura, virilidade, masculinização e machismo, militarização, disciplinamento e enquadramento de corpo, dos comportamentos, das emoções e dos sentimentos etc”.

Ideologia

Maciel aponta uma peculiaridade na Polícia Militar do DF, qual seja a forte ideologia da militarização potencializada por questões de ordem política.

“O ethos policial militar implica na reprodução de uma (des)mobilização subjetiva dos agentes, com ajustamentos nas identidades desses policiais, fazendo com que abusos e outras violências, por vezes descaracterizados como postura enérgica para a instituição, não sejam vistos como o que exatamente são: código moral compartilhado de sociabilidade policial, fazendo com que os policiais se sintam autorizados para agirem dessa forma. Isto é bastante visível seja na naturalização da categoria êmica (nativa) "peba", na banalização (e, até mesmo, priorização de meios de resolução de conflitos ilegítimos e uso excessivo da força física), na difusão de representações individuais e coletivas extremamente violentas e preconceituosas (tais como: "bandido bom, é bandido morto", "a polícia prende, a justiça solta", "direitos humanos só protege bandido"), ou mesmo na normalização do perfil de "policial justiceiro", muitas vezes condecorado pela corporação como herói diante de uma atuação pautada pela violência extrema e letal, porém deturpada como bravura e espírito de corpo”.

Desconstrução

A solução do problema do abuso e violência policial passa, em partes, pela formação profissional, mas, para o professor, não é o bastante, sendo necessário um trabalho amplo, sobretudo para os gestores, de desconstrução e desvinculação da identidade militar de seu caráter bélico e maniqueísta. “Muitos desses profissionais se queixam de falta de reconhecimento, de prestígio social etc. Mas seria ingênuo pensar que a mudança deve acontecer somente de dentro para fora, da mesma forma que parece óbvio afirmar simplesmente que as polícias estão inseridas na sociedade e se moldam também pelas formas de criminalidade”.

“O que observamos hoje, em termos das pautas e agendas de segurança pública, tem influenciado não apenas no preparo dos policiais diante de uma realidade institucional, social e política que tem favorecido o crime (por exemplo, com a flexibilização e facilitação do acesso às armas de fogo e munições pelos cidadãos). Portanto, parece contraditório impulsionar a violência e, ao mesmo tempo, investir no enfrentamento à violência com uso da força policial. As polícias, como disse Michel Foucault, são tecnologias de biopoder, obviamente, atravessadas por interesses políticos e corporativismos”, encerra Maciel.

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Edição: Flávia Quirino