“O que nós vamos contar aqui é a legítima história verdadeira, nós não vamos inventar nada”
Em 2013, quando um dos integrantes da Cia Burlesca voltou de Pirenópolis (GO), contava ao grupo sobre uma história que conheceu por lá e que tinha que virar espetáculo. Quando uma história tem que virar espetáculo é porque ela é valiosa. Embarcaram todos no que o companheiro trazia.
Perto de Pirenópolis, na cidade Lagolândia, em 1920, existiu uma mulher que curava o povo adoentado, organizava trabalho e moradia de forma igualitária, liderou um exército de quase 400 homens e se uniu à Coluna Prestes. Como nunca tinham ouvido esta história que aconteceu tão próxima de Brasília? Santa Dica! Ela não estava nos livros de história e pouco se falava dela em conteúdos na internet.
Nos mutirões de escrita de projetos, o grupo escreveu “O dia do fogo”, montagem e circulação do espetáculo para a primeira infância. O nome do projeto virou o nome de uma das cenas que conta sobre o enfrentamento do exército com a República dos Anjos. Este nome foi dado ao local porque Dica pedia conselhos para os anjos. Com bonecos de luva, bunraku e músicas populares, o espetáculo foi pensado para falar de levantes populares com um público amplo.
O projeto passou e de prontidão, foi dado o mergulho na história dessa mulher com as atrizes indo até Lagolândia. Entre uma casa e outra, nas caminhadas e no Rio do Peixe, no túmulo com a Gameleira e na própria casa da Dica, foram surgindo mais alguns fios de histórias. Todas elas repletas de bravura e mistérios.
Conversaram com muitas mulheres, a moça da pizzaria que tinha a foto da Dica em um porta-retratos e explicou que a maioria ali é afilhada da madrinha Dica; Maria que deu pouso e assou biscoito de queijo logo pela manhã; a vizinha que emprestou o wifi e vendou bolo de pote; e a Waldetz escritora e historiadora que cortava um grande porco recém-abatido, interrompeu a atividade e foi receber as atrizes, mostrar seus livros sobre a Dica.
Chegou a hora de voltar para Brasília e partilhar tudo com o grupo. Uma tempestade caiu na despedida e fez a volta ser com mais calma e cuidado. Era sabido que pisaram em terras de luta, que a noite guardava mistérios com o assovio do vento balançando a gameleira e o rio do peixe era denso, carregado de histórias, todas elas foram pra cena. Lagolândia, Dica e as mulheres que contaram suas histórias estão no espetáculo Bendita Dica.
Fazer o espetáculo se transformou em abrir uma roda de histórias para ouvir outras. Não foi uma nem duas, mas muitas vezes que alguém do público, após assistir o espetáculo, aponta para uma mulher e diz: Ela é a Santa Dica daqui!
Enquanto o cenário político vai mudando, a história da Dica também vai se conectando. Estrearam a peça em meio ao processo do golpe, em 2016, contra a primeira presidente mulher do Brasil, Dilma Rousseff. Os bonecos da peça que representam o latifúndio, a igreja e o estado se organizando para perseguir a Dica, narravam o que aconteceu há cem anos e acontecia também naquele momento. As histórias se entrecruzavam, uma puxando a outra como uma grande rede de histórias.
Em 2019, fomos ao Rio Grande do Sul em busca da história de Roseli Nunes, militante Sem Terra. Ela, junto com Margarida Alves foram o mote para o novo espetáculo. Como de costume, ao fazer uma pesquisa levam um espetáculo e uma oficina, apresentaram Bendita Dica para povo gaúcho. Em uma das entrevistas da pesquisa, um companheiro que ocupou a histórica Fazenda Anoni, começou a sua fala assim:
“O que nós vamos contar aqui é a legítima história verdadeira, nós não vamos inventar nada”.
Foi essa frase que deu o nome do novo espetáculo: “A Legítima História Verdadeira”. Contar histórias poderosas faz com que se escute várias outras com tamanha beleza e força.
Manter um grupo de teatro contando a mesma história pra lá de cem vezes, faz o rio de histórias ficar cada vez mais abundante. E a cada uma que se soma toma-se mais força rumo ao horizonte que todas elas seguiram, de tempos fartos e justos para todas e todos.
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*A Cia Burlesca é uma companhia de teatro político do Distrito Federal.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.
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Edição: Flávia Quirino