Distrito Federal

Exclusão social

No DF, Ibaneis Rocha ameaça remover 15 mil pessoas de comunidade periférica da Estrutural

Moradores de Santa Luzia lutam contra injustiça socioambiental e abandono de décadas

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Consolidada há décadas, comunidade de Santa Luzia sofre com falta de saneamento básico e infraestrutura urbana precária - Valmor Pazos Filho

O governador Ibaneis Rocha (MDB), que concorre à reeleição, tem planos de retirar mais de 15 mil pessoas de uma das ocupações mais antigas do Distrito Federal, a comunidade de Santa Luzia, que fica na região administrativa da Cidade Estrutural. Trata-se de uma das periferias mais pobres da capital brasileira, e que ficou nacionalmente conhecida por ter abrigado o maior lixão a céu aberto da América Latina, desativado em 2018.

Em uma postagem nas redes sociais do governador, na semana passada, em que ele fala de propostas para a os moradores da Estrutural, uma das promessas é exatamente a "realocação" dos moradores de Santa Luzia. O objetivo é liberar a área para estabelecer uma zona tampão do Parque Nacional de Brasília, que fica nas proximidades da ocupação. Após a repercussão da postagem, ela foi removida. 

Sem qualquer infraestrutura urbana digna e, agora, sem perspectiva até mesmo de manter o próprio lar, moradores temem pelo futuro. Integrante do coletivo Mulheres Poderosas, que atua na comunidade, Vanessa Ferreira Dias, de 35 anos, relata que se mudou para o Santa Luzia tentando se livrar do aluguel. Ali comprou um lote e se estabeleceu com a família. Ela relata que chegava a ficar sem energia de 5 a 10 dias na comunidade, mas agora a maior dificuldade é o abastecimento de água. "A questão maior que está sendo aqui na Santa Luzia é a questão da água, a gente passa 3 a 4 dias sem água", descreve. 


Ruas de terra e falta de abastecimento de água: mais de 15 mil famílias resistem em condições precárias a 15 quilômetros da Praça dos Três Poderes, em Brasília / Brasil de Fato DF

Imersa em um complexo impasse jurídico e ambiental, a Santa Luzia nem sequer tem saneamento básico. As ruas são de terra e o esgoto corre a céu aberto. Sobre a ameaça de despejo, Vanessa cita o ambiente de tensão e medo das famílias.

"A gente teme que essa possível reeleição do Ibaneis possa significar a remoção daqui. E a comunidade em peso não quer sair, muitos criamos os filhos aqui, estabelecemos relações comunitárias. Queremos propor uma audiência pública para sermos ouvidos, já que as pessoas que vivem aqui não são ouvidas", protesta. 

O Brasil de Fato procurou a assessoria do governador Ibaneis Rocha para que explicasse melhor essa proposta de realocação do Santa Luzia, mas, até o momento, não houve retorno. O histórico do governo atual em relação ao Santa Luzia, no entanto, não é nada promissor. A comunidade foi alvo de ao menos duas operações da Secretaria de Proteção da Ordem Urbanística (DF Legal) em março e abril de 2019, ocasião em que a secretaria retirou 428 edificações precárias em madeira e 220 mil metros lineares de cerca de arame e madeira, de acordo com dados da própria praça. Os moradores que tiveram suas casas derrubadas não conseguiram ser realocados e alguns até retornaram à comunidade.

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Conflito socioambiental

A ocupação de Santa Luzia localiza-se nas bordas do Parque Nacional de Brasília, a mais importante unidade de conservação do DF, com cerca de 40 mil hectares, responsável pela preservação de grande diversidade da fauna e flora do cerrado, e de nascentes de córregos que formam um dos principais mananciais da cidade, a represa de Santa Maria, responsável por 25% do abastecimento de água potável da capital brasileira.

Os primeiros ocupantes começaram a chegar ainda na década de 1990, mas foram se ampliando com o passar do tempo, expulsos das áreas centrais da cidade pela especulação imobiliária e aumento do custo de vida de uma cidade historicamente desigual. Apesar disso, somente em 2007 a região foi decretada como Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE), por causa da proximidade com o parque e os riscos ecológicos disso.

De acordo com definições legais em vigor, os ocupantes estariam na chamada faixa de tamponamento do parque, uma linha de 300 metros em que seria proibida a existência de edificações, apesar delas já existirem quando da transformação em ARIE. Localidades como a Cidade do Automóvel, por exemplo, ficam a menos de 300 metros da unidade de conservação, mas encontram-se totalmente regularizadas, o que mostra um tratamento diferenciando entre populações vulneráveis e setor empresarial. 

"Não faz sentido você remover populações quando elas estão instaladas, onde já existem construções de dois a três pavimentos de alvenaria. Era pro governo ter atuado em 2013. É completamente inviável e injusto fazer isso agora. Nossos estudos delimitaram a microbacia do Córrego Cabeceira do Acampamento, que mostram que Santa Luzia não causa mais impactos do que outras áreas, como a Cidade do Automóvel, a própria Estrutural, além do Setor Militar Urbano, que inclusive faz treinamentos com materiais explosivos na área próxima do Parque Nacional de Brasília", argumenta a professora Liza Andrade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB (FAU/UnB) e coordenadora do grupo de extensão Periférico, que trabalha com assessoria sociotécnica para comunidades de periferia, com enfoque nos direitos humanos das pessoas que vivem nessas áreas.

Segundo ela, os maiores impactos causados pela comunidade Santa Luzia são decorrentes justamente da falta de regularização, que impede os moradores de contar com serviços como saneamento básico e abastecimento regular de água. 

Em maio de 2015, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) entrou com uma Ação Civil Pública (ACP) para que essa faixa de tamponamento fosse reflorestada e a  ARIE fosse cercada, ignorando totalmente a ocupação urbana.

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Em decorrência dessa ACP, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional (Codhab), responsável pela regularização e urbanização das áreas de interesse social no DF, que são as ocupações, desenvolveu o projeto de um edifício de moradia como solução de realojamento das famílias da Santa Luzia. Esse projeto prevê quatro lajes sobrepostas estendidas ao longo de 3,2 quilômetros com cerca de 2400 unidades habitacionais. A área entregue às famílias seria bruta para que cada uma pudesse construir a sua moradia na laje. 

Essa proposta, no entanto, não é aceita pela comunidade porque ela implica em desfazer vínculos comunitários que vêm sendo construídos há décadas entre os moradores, além de não oferecer, na opinião de especialistas, as soluções mais adequadas para o problema. 

"Temos estudos comprovando que o trabalho da Codhab não teve participação dos moradores. Trata-se de uma realocação de todo mundo para uma proposta linear de 3,2 quilômetros, passando de fora a fora, querendo enquadrar todo mundo num único modelo de habitação, acabando com as redes de solidariedade, que se conhecem há 20 anos", afirma a professora Liza Andrade.

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Alternativas sociais e ecológicas

Um conjunto de entidades, liderado por pesquisadores e professores da Universidade de Brasília (UnB), além da Defensoria Pública e órgãos como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), estão atuando para impedir qualquer remoção e propor alternativas que mantenham a existência da comunidade, mas com proteção ambiental do Parque Nacional. 


Proposta dos moradores, com assessoria técnica da UnB, prevê um parque urbano linear para separar as casas dos limites do Parque Nacional de Brasília, unidade de conservação mais importante do DF / Valmor Pazos Filho

"Estivemos em Santa Luzia na semana passada, instituições como a UnB, a Defensoria Pública e a Fiocruz, reunidos com algumas lideranças e com o coletivo Mulheres Poderosas. O objetivo foi esboçar a Carta Santa Luzia Resiste contra a remoção da população. Esse documento é baseado em estudos técnicos-científicos e relatos da comunidade com o objetivo de solicitar uma audiência pública e possibilidades de promover a regularização fundiária sustentável com princípios mais ecológicos para projetos de urbanismo, habitacionais, de ecosaneamento, mobilidade, respeitando a sensibilidade da região e proximidade com o Parque Nacional de Brasília", explica a professora Liza Andrade, da FAU/UnB.

Na carta, assinada por pelo menos 15 organizações, a qual o Brasil de Fato teve acesso, as entidades e representações de moradores reafirmam a proposta de se regularizar a área urbana e viabilizar a construção de um parque ecológico linear na faixa de até 100 metros dos limites do Parque Nacional de Brasília. Esse parque ecológico urbano asseguraria uma área de reflorestamento e construção de agrofloresta, permitindo assim a contenção das águas pluviais e atividades de lazer para os moradores.  

"Com a ocupação urbana mais ecológica e sensível à água, parte-se do princípio de que o equilíbrio do ecossistema urbano de Santa Luzia com técnicas de Soluções Baseadas na Natureza, além da integração das propostas com a sociedade através de adequações sociotécnicas, é a melhor proposta para solucionar os problemas existente nesta região", diz um trecho do documento. A íntegra da Carta Santa Luzia Resiste deve ser disponibilizada ainda essa semana, para a coleta de assinaturas de mais entidades e pessoas.

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Edição: Flávia Quirino