O discurso de ódio estabeleceu limites objetivos ao debate coletivo
No dia 07 de setembro de 2022, data do bicentenário do momento em que nos tornamos formalmente independentes de Portugal, o tradicional desfile militar na Esplanada dos Ministérios foi engrossado por jovens marchantes de escolas públicas militarizadas.
Estávamos acostumados a ver estudantes de escolas militares das forças armadas e bombeiros desfilando, fardados, com os corpos moldados pela disciplina soldadesca.
Todavia, um dos saldos do bolsonarismo, que não será derrotado nas urnas, caso o atual presidente não se reeleja, é a presença crescente do militarismo no tecido social brasileiro.
Porque não se trata de segurança nas escolas e arredores. Esse é o discurso aparente. Fosse isso bastava policiamento externo.
Se trata de fazer penetrar na juventude e familiares um combo reacionário composto de ingredientes como esses: defesa da pátria, da família e da propriedade; direito ao porte de armas para que a população possa se defender de bandidos e do Estado (e nessa conta movimentos sociais populares como o MST, e partidos de esquerda são considerados marginais e uma ameaça ao país); posição contrária a tal “ideologia de gênero”; rebaixamento da maioridade penal para que adolescentes possam ser presos e julgados como adultos; elogio à violência policial como prática de combate ao crime; posição avessa às diferenças, à pluralidade cultural e ao suposto protagonismo do judiciário; intolerância religiosa, entre outras.
:: Há 200 anos... dependência e morte! ::
O movimento Escola Sem Partido e a militarização das escolas públicas se opõem diretamente aos pressupostos da pedagogia freiriana, pautada pelo diálogo, pela construção coletiva, pela educação popular.
A cultura da denúncia, dos ataques nas redes sociais têm silenciado a cultura democrática no ambiente escolar. A pandemia, por certo, colaborou para a diminuição dos espaços de integração entre escola e comunidade e o discurso de ódio estabeleceu limites objetivos ao debate coletivo e à participação ativa da comunidade na escola.
Gigante pela própria natureza
É nesse contexto, marcado pela crescente tentativa de asfixia da democracia brasileira que é importante destacar experiências como a que culminou na peça “Gigante pela própria natureza”, fruto do trabalho de cinco anos do professor e diretor teatral Pedro Ribeiro, com estudantes da comunidade da região administrativa Fercal e arredores, que estudavam no Centro de Ensino Médio 02 de Sobradinho.
Nos dias anteriores ao 07 de setembro o grupo realizou temporada no Centro Cultural de Planaltina, com sessões de debate na sequência das apresentações e público total de 1045 pessoas. Em cena vimos o resultado de um trabalho teatral maduro, com o jovem elenco formado por Anna Júlia Mello, Ana Paula Pereira, Kamila Rodriguéz, Thalisson Oliveira e Yuri Sherlok demonstrando em cena farto repertório coreográfico e musical, examinando a partir de seu território, da relação deles com a escola, a forma como constituem suas subjetividades, e a maneira objetiva como se colocam no mundo.
Não há história linear, não há enredo melodramático como fio da meada para acompanhamento dos espectadores.
Quem assiste é convidado a examinar cenas que revelam o mundo dos personagens, em geral mediado pela escola. Sem o domínio do tempo presente, a cenografia da estrutura metálica de cinco cadeiras se transforma, em dado momento, numa jaula que cerca uma personagem leiloada em cena: a carne mais barata do mercado é a carne negra e o lastro da escravidão não se desvencilha dos corpos em cena.
O dado estruturante da experiência dos cinco jovens é o racismo, e a resistência contra ele. Os discursos conservadores, o mito de certo gigantismo de nosso país, a ideia que devemos nos orgulhar do chão em que pisamos, que devemos ostentar sentimentos patrióticos acima de tudo, a revelia das marcas do trauma da desigualdade e do racismo, é fortemente contestada em cena.
A equação tem potência: o que permite que jovens organizem suas experiências para confrontar aquilo que os afronta, o discurso fascista, é a crítica antirracista.
É a luta por aquilo que os humaniza que lhes dá foco e mira nas tentativas cênicas de acertar o alvo. Nas palavras do diretor Pedro Ribeiro:
"Gigante Pela Própria Natureza surge como uma demanda de uma escola pública na semana da consciência negra. Ele toma como premissa a percepção de que o Brasil experimentado pelo corpo negro e periférico difere e muito da nação prometida pela letra do Hino Nacional, em que se torna um desafio, para esse indivíduo, procurar nas paisagens do real correspondências com a poesia cívica patriótica, como um espelho estilhaçado em que o sujeito nunca se viu refletido. Assim, racismo e periferização colaboram para que o cidadão e ‘‘filho da terra’’ perceba sua cidadania como parcial, seu corpo como alvo de violências, seu Estado como fonte de desconfiança e seu hino como uma utopia cada vez mais inalcançável”.
O trabalho que o grupo traz para a cena, com financiamento do Fundo de Apoio à Cultura do DF, é o resultado de meia década de trabalho de pesquisa teatral sobre nossas contradições, digo “nossas” pressupondo que o que o grupo coloca em cena diz respeito não apenas à vida do quinteto de jovens atrizes e atores, mas à vida de todos nós, reféns de um discurso de nacionalidade, dois séculos depois da independência, que ainda não é capaz de lidar politicamente com nossos dilemas estruturais.
O grupo disputa um lugar de existência, coloca suas experiências em cena, depõe, canta e dança, na expectativa de comunicar uma posição à contrapelo àquela do discurso fundado em bases coloniais, das matrizes fundadoras da pátria, incapaz de reconhecer o sofrimento secular causado pela escravidão e as formas de resistência contra o racismo e a desigualdade.
Não custa lembrar que se a escola em que Pedro Ribeiro atua tivesse a gestão militarizada, provavelmente o trabalho que o grupo desenvolve não teria amadurecido, pelo contrário, muito provavelmente as portas teriam se fechado para a pesquisa teatral, questionando abordagens, formas cênicas, a corporeidade, as matrizes estéticas afrodescendentes da linguagem artística do grupo, etc. O professor poderia sofrer perseguições, ser trocado de escola, os estudantes ficariam marcados.
Para que a arte seja uma forma latente de reflexão sobre nossa experiência é necessário que as escolas sejam espaços livres para reflexão, sem leis marciais, sem enquadramentos disciplinares, sem corpos marchantes restringindo a liberdade de expressão e criação capaz de forjar trabalhos da potência cênica de “Gigante pela própria natureza”.
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*Rafael Villas Bôas é professor da Universidade de Brasília e diretor da UnBTV.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Flávia Quirino