No capitalismo, a relação com a natureza não é preponderante: o que prevalece é o poder político
Guardiã, ela gostava de viver ali no cerrado, protetora, forte, sorridente, cumpria sua missão cuidando da natureza e enfrentando um cenário hostil de morte.
A seca era rigorosa, passaram-se mais de 130 dias sem chover. Os incêndios acidentais e os incêndios criminosos nas Florestas e Agroflorestas da Agricultura Familiar eram assustadores.
O clima seco e a queimada faziam uma espessa neblina de fumaça, capaz de deixar o sol e a lua bem vermelhos, parecendo foto editada com filtro. O fogo havia queimado mais de 10% do Parque Nacional de Brasília.
:: Fogo no Parque Nacional de Brasília já destruiu área equivalente a 182 campos de futebo ::
Gananciosos, os representantes da especulação imobiliária ficavam de olho nos territórios e nas áreas de proteção ambiental, nas terras camponesas e indígenas, mas não demonstravam a mínima preocupação com a morte de árvores, com a destruição de reservas naturais e com a construção de asfalto sobre as nascentes de água.
As grandes plantações, que produziam sem diversidade, acabavam gerando a extinção das sementes pelo uso do transgênico e tantas doenças causadas pelo uso de agrotóxico.
Pessoas mesquinhas viam no Cerrado, uma oportunidade para construção de condomínios e para aumentar seu lucro individual. Nenhum interesse com a ecologia e a preservação.
No capitalismo, a relação com a natureza não é preponderante: o que prevalece é o poder político e a mercadoria. A sociedade paga caro por isso.
Era tempo de difundir as práticas de agroecologia e técnicas agrícolas em equilíbrio com o meio ambiente.
A guardiã mantinha sua postura firme, bonita e corajosa. É verdade que às vezes ela se sentia sufocada, como se a gargalheira a estivesse estrangulando. Mas ela estava sendo pressionada e a vida não era fácil: a seca, as queimadas, o desmatamento, as doenças lhe causavam imensa tristeza. Perder amigos próximos, nem se fala.
No terreno da casa que ela sustentava, houve um dia em que um Angico foi cortado. Pouco depois, as raízes do Angico enfraqueceram e uma parte pequena do solo cedeu. Além da erosão, na primeira chuva forte, na distância de uns 30 metros ribanceira abaixo, um Ipê também morreu.
Acontece é que as raízes das árvores estavam vitalmente abraçadas no subsolo. Algo que ninguém supunha, vendo a paisagem de cima.
Quando caiu o Angico, e perdeu a força a sua raiz, restou solta, debaixo da terra, a raiz do Ipê. Sem o Anjico, o Ipê não sustentou a sua imponência. O Ipê também tombou! Foi por solidariedade? Fraqueza? Tristeza profunda? Difícil saber.
O impacto destrutivo de uma única árvore derrubada não pode ser medido imediatamente. Poucos sabiam que o fogo no parque queimava por baixo do solo as raízes de plantas que estavam a quilômetros de distância. A natureza tem lá a sua razão neste movimento de vida e morte.
Na casa que a guardiã sustentava, a construção da varanda, que uma década antes fora milimetricamente planejada, não considerou que um dia ela cresceria tanto e tão frondosa e bela. O seu espaço foi ficando justo e pequeno demais! E ela, já sufocada, quase estrangulada, chorando as queimadas da floresta, sem o Ipê e sem o Angico, também se sentia mais solitária, fraca e triste.
Depois de suportar tantas perdas, passou a respirar melhor com as primeiras chuvas, também teve o sentimento de alívio, leveza e alegria, quando, ao redor de todo seu tronco, foi cortado o piso que a estrangulava.
Nessa hora, então, a Copaíba chacoalhou com força para os lados e balançou sua copa como uma mulher que, vaidosa, balança os seus cabelos. Suas raízes abraçaram forte as raízes de muitas árvores. Ela também segurou rochas para proteger a margem do córrego e prevenir a erosão. Uma migração de todo o tipo de animais foi acolhida em sua copa, que sombreava o dia quente. Sua seiva, farta e medicinal, seguiria salvando vidas.
A Copaíba sacudiu livre, na testemunha das araras, do gavião azul, das cigarras, dos pássaros e das borboletas de todas as cores. De suas folhas, a umidade refrescante espargiu conforto, saúde e vida para as plantas, os animais e as pessoas. Sua vitalidade virou a festa dos saguis, da raposa, da família de saruês, das cobras, dos calangos, das lagartas de fogo. Ela foi aplaudida pelas crianças e pela família que compartilhava aquele espaço com ela.
Agora, enquanto ela aguardava uma quantidade de chuva suficiente para restabelecer um pouco de tanta vida que havia sido sacrificada, ela se preparava para ensinar o que sabia sobre os cuidados com a mãe terra e a convivência harmônica entre a natureza e a humanidade. O vento soprou que pessoas virtuosas plantariam sem veneno, cuidariam das sementes e preservariam os mananciais de água. Ela amava aquela terra e seguiria sendo uma guardiã do cerrado e da floresta.
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*Ju Amoretti é cientista social, psicóloga, pesquisadora de mulheres, direitos humanos e pensamento social latino-americano e, agente cultural no DF.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino