Prever o resultado de eleições proporcionais no Brasil sempre foi uma tarefa praticamente impossível devido à complexidade das regras que governam a escolha de representantes para a Câmara dos Deputados, as Assembleias Estaduais, a Câmara Legislativa do Distrito Federal e para as Câmaras de Vereadores. A pulverização de candidaturas torna mais custoso o processo decisório do eleitor e impossibilita aferições confiáveis por meio de pesquisas de opinião, inviabilizando o trabalho de estimar o desempenho das nominatas partidárias.
As usuais dificuldades envolvendo a eleição desses cargos em 2022 devem ser acompanhadas de maior incerteza quanto aos resultados, por três motivos principais: mudanças nas regras eleitorais, maior disponibilidade de recursos para mandatários e a persistência de elevado grau de sentimentos antissistema no eleitorado. A primeira variável deve reduzir sensivelmente a fragmentação partidária no Congresso e nos legislativos subnacionais, enquanto a segunda tenderia a ajudar os candidatos à reeleição, e a terceira atuaria em sentido contrário.
Qual equilíbrio esses vetores devem atingir em 2 de outubro? Olhamos para o caso do Distrito Federal (DF).
De partida, vale ressaltar que a capital do país tem características muito específicas em relação às demais unidades da federação (UF). O distrito acumula atribuições de município e estado, com eleições apenas a cada quatro anos para os cargos de governador, oito deputados federais e 24 deputados distritais. O DF elege seus três senadores da mesma maneira que as demais UFs: alternância entre um terço e dois terços das cadeiras a cada eleição. A ausência de vereadores e prefeito tem efeitos pouco estudados e conhecidos nas formas de ingresso na política.
O reduzido número de cadeiras nas eleições proporcionais representa um desafio em particular para a estratégia partidária de formação de nominatas: em um sistema partidário altamente fragmentado e com elevada concorrência, é raro que um partido eleja mais de um representante para a Câmara dos Deputados ou uma bancada acima de três ou quatro deputados distritais.
A proibição de coligações proporcionais, a elevação da cláusula de desempenho para os partidos garantirem representação nas casas legislativas e regras mais rígidas para a distribuição de sobras impõem barreiras mais severas para eleger deputados.
Em alguns estados que têm bancadas pouco numerosas como o DF, alguns partidos adotaram estratégias de “coligações informais cruzadas”. Concentraram filiações em um partido para disputar as cadeiras da Assembleia Legislativa e em outra legenda para concorrer aos assentos na Câmara dos Deputados.
Em Brasília, não houve semelhante movimento de consolidação a priori do sistema partidário local. Na capital, os partidos optaram por uma estratégia diferente, focada no potencial dos chamados “puxadores de votos” para a disputa de deputado federal, como os ex-governadores José Roberto Arruda (PL), Rodrigo Rollemberg (PSB) e Agnelo Queiroz (PT).
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Essa escolha pode estar baseada em múltiplos fatores:
1) aposta de que esses nomes devem ter desempenho elevado, facilitando o atingimento do quociente eleitoral, garantindo pelo menos uma cadeira;
2) candidaturas competitivas em múltiplos partidos desincentivando esforços para a tentativa de eleger uma segunda cadeira; e
3) dificuldade de formar nominatas com candidaturas competitivas o suficiente para disputarem as sobras (para disputar essas vagas, os partidos precisam atingir pelo menos 80% do quociente eleitoral, e os candidatos, ao menos 20% dessa métrica em votos nominais — um requisito mais rigoroso do que o aplicado aos candidatos que concorrem pelo quociente partidário na primeira rodada, que é de 10%).
A opção por nomes de políticos tradicionais se repetiu em outros estados, dada a expectativa de desempenho significativo em decorrência de um reconhecimento nominal muito superior à média dos demais candidatos. O incentivo criado para reduzir os "puxadores de votos" pode sair pela culatra e tornar mais difícil a entrada de nomes menos conhecidos na arena política. A nova regra também acaba por punir o eleitor que votava em legenda.
Neste ciclo eleitoral, candidatos à reeleição contam com mais recursos para disputar o apoio do eleitorado, primordialmente via fundo eleitoral, e maior disponibilidade de emendas orçamentárias. Candidaturas financeiramente turbinadas tendem a colocar os atuais mandatários em posição mais vantajosa, aumentando a competitividade por um número bastante limitado de cadeiras.
Por outro lado, a IPSOS Public Affairs identificou em 2021 a persistência de elevado sentimento antissistema na opinião pública brasileira – uma das principais variáveis por trás da eleição de Jair Bolsonaro e do elevado índice de renovação do Congresso em 2018. Apesar de a pesquisa já ter mais de um ano, a persistência de um cenário socioeconômico desafiador pode indicar que a satisfação com o establishment segue em baixa no Brasil. Em outras palavras, a maior disponibilidade de recursos favorecendo incumbência em meio a um cenário de opinião pública mais desafiador é uma força contrária.
Como ocorre com toda mudança de regra, é impossível prever todas as possíveis estratégias dos atores diante dos novos incentivos. Uma pista deixada pelas ultimas eleições municipais é que os municípios menores tiveram maior redução no número de partidos. Isso poderia indicar que o efeito da regra que visou reduzir o número de partidos será mais relevante em estados e num distrito de menor magnitude como o DF. A estratégia dos partidos de formação de nominatas com figuras de peso pode conflitar com os anseios da população por novos corpos e novas agendas no cenário político.
O resultado das eleições proporcionais irá dizer se os recursos financeiros e as mudanças de regras eleitorais serão suficientes para superar o sentimento anti-establishment que permaneceu mesmo depois de enfraquecido o discurso da nova política. Se a estratégia dos partidos se mostrar efetiva, o resultado pode ser, mais uma vez, uma população insatisfeita que confere pouca legitimidade às Casas Legislativas. A famosa frase de Tomasi Di Lampedusa, no romance Il Gattopardo, pode, mais uma vez, explicar os movimentos de mudança institucional que favorecem os mesmos grupos: “É preciso que tudo mude para que tudo continue como está”
*Graziella Testa – Doutora em Ciência Política e Professora da FGV/EPPG
**Carlos Nepomuceno – Mestre em Ciência Política e analista sênior da Eurasia Group
***Esse artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, acesse o site do Observatório.
****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino