A 15ª edição do Festival da Mulher Afro Latino Americanas e Caribenhas, Latinidades, aconteceu em julho, mas o evento, que é considerado o maior protagonizado por e para mulheres negras da América Latina rompeu a geografia e foi parar nos Estados Unidos.
No mês de setembro, o Latinidades lançou a publicação "Festival Latinidades: Memórias e Utopias de Mulheres Negras" nas Universidades Spelman College, em Atlanta e na Universidade de Maryland Baltimore County, em Baltimore. A publicação reúne os saberes e histórias de mulheres de todo o mundo compartilhadas em todas as edições realizadas do evento até o ano de 2022.
O Latinidades é um evento anual criado no Distrito Federal há 15 anos por Jaqueline Fernandes e Chaia Dechen com o objetivo de reconhecer, valorizar, visibilizar e formar público para as produções de mulheres negras afrolatinas, americanas e caribenhas, de forma transversal.
Jaqueline Fernandes, idealizadora do festival e CEO do Instituto Afrolatinas diz que por causa da repercussão da 15° edição do Festival que teve como tema "Mulheres Negras, todas as alternativas passam por nós” e da recente publicação que registra a trajetória dessa plataforma de artes e conhecimento, o Instituto tem recebido convites internacionais.
:: Com programação inédita, Latinidades está de volta ::
"Recentemente, tomamos ciência de que as nossas iniciativas têm despertado interesse em parte da comunidade afrolatina nos Estados Unidos e estou muito emocionada com isso. Em setembro, o país celebrou o Mês da História e da Cultura Latina e os convites tiveram esse gancho direto", explica.
Um dos convites partiu da PhD em Sociologia pela Universidade de Michigan, Ann Arbor, e Mestre em Políticas de Desenvolvimento Internacional pela Escola de Políticas Públicas Gerald R. Ford, Dra. Tanya L. Saunders.
“As Universidades ainda têm perspectiva eurocêntrica e anti-negra. É importante estar dentro dos espaços educacionais, para que possamos decolonizar a academia. Temos que lembrar que o objetivo destas instituições é sempre embranquecer nosso pensamento e epistemologia para tentar se apropriar para que não sejamos um desafio, um perigo para essa hegemonia. Não é a Universidade que está no centro dos pensamentos negros. Temos sempre que lembrar que o centro está acontecendo fora da Universidade nas áreas de artes, performance, nas ruas e no nosso ativismo. As novas ideias e teorias serão produzidas nesses espaços fora da academia, por isso o Latinidades é tão importante aqui”.
Para Lígia Batista, oficial de Programas para Justiça Étnico-Racial da Open Society Foundations América Latina e Caribe pessoas negras - em particular mulheres negras cis e trans - devem ter garantido o direito de falarem por si mesmas e contribuírem para a definição dos rumos desse país que por séculos carregaram nas costas. “A ocupação de posições de poder e tomada de decisão por negros e negras comprometidos com o enfrentamento ao racismo e demais formas de discriminação nos mais variados setores da sociedade é agenda fundamental para consolidação de qualquer projeto democrático de Brasil. Por isso, é urgente que se fortaleçam estratégias de enfrentamento à sub-representação e liderança negra na política, na cultura e nas artes, na academia e no setor privado”, diz.
Jaqueline Fernandes afirma que são muitos os motivos para comemorar. Desde o convite ao intercâmbio, ao apoio para materializar tanto o Festival, quanto a publicação e a própria experiência de viagem.
"Significa reconhecimento por uma luta e uma jornada de 15 anos buscando fortalecer e reverberar as potências e produções artísticas e intelectuais de mulheres negras, em uma sociedade racista, cujo projeto de sociedade está articulado contra nós e também um reforço de que estamos seguindo na direção certa, a despeito dos obstáculos e dificuldades no caminho, e da negação sistemática das contribuições das mulheres negras para a humanidade", reflete.
Além disso, ela acredita que estar em outro país apresentando os 15 anos de história do festival é uma das utopias pensadas por mulheres ancestrais sendo materializadas.
:: "As utopias das nossas mais velhas se materializaram em nós", diz idealizadora do Latinidades ::
"É indescritível a sensação de poder ver uma grande utopia se materializando. Isso quer dizer a internacionalização do Festival Latinidades como um espaço de inovação, tecnologia social e formação política, que articula transformação a partir das artes, da cultura e da gestão cultural. Sempre foi sobre isso", comemora.
Sem fronteiras
“Foi a primeira vez que vi uma Universidade só com mulheres negras, e retintas. Foi impactante. Não imaginava o quanto seria marcante estar principalmente na Spelman College. A conversa teve um nível altíssimo de troca e de envolvimento. Elas foram interessadas em aprender história e cultura brasileira. Foi interessante observar o quanto o Latinidades faz sentido em qualquer lugar. Enquanto eu falava, via vários olhos brilhando. O retorno das estudantes foi de querer contribuir. Estar nos EUA também foi importante porque a maioria das pessoas não conhecem a história do dia 25 de julho, o Dia da Mulher Negra Afrolatina, Americana e Caribenha. Porém, enxergam o Brasil como referência em articulação no que tange ao tema. Nos reconhecem como potência”, descreve Jaqueline Fernandes sobre o intercâmbio.
Marcela Gonzaga, 28 anos, de Ipatinga, no interior de Minas Gerais, é a única aluna brasileira da Spelman College. Ela é professora de Língua Inglesa e mestra em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Atualmente é professora Assistente de Português como Língua Estrangeira no departamento de World Languages and Culture da Spelman College, e aluna, cursando as disciplinas de Raça e Identidade na América Latina e também Diáspora Africana e o Mundo. Marcela foi convidada a auxiliar na tradução simultânea da palestra de Jaqueline Fernandes para os presentes na Spelman College.
“Durante a fala de Jaqueline senti a força do meu país, nas possibilidades que criamos para contornar as mais diversas condições de subalternização histórica. Ela teceu importantes dados sobre a potência do festival, ressaltando os desafios que esse espaço de edificação negra enfrenta, principalmente no tocante do incentivo financeiro por partes dos órgãos públicos que estrategicamente escolhem para quais manifestações culturais os recursos são repassados”.
Para a doutora Tanya L. Saunders o intercâmbio é também um ato revolucionário, uma vez que a branquitude alcança outros idiomas e conseguem trocar ideias com outros povos.
“O povo negro das Américas é limitado. O Latinidades está ajudando a romper as fronteiras para as feministas negras. Atravessando o idioma e inclusive a academia e a epistemologia hegemônica. Para as pessoas que receberam a Jaqueline aqui, foi o abrir de uma porta para elas começarem a pensar além da fronteira geopolítica”, destaca.
:: Artigo. Por que enaltecer a mulher negra, latino-americana e caribenha? ::
Mulheres negras
De acordo com a socióloga Vilma Reis o movimento de mulheres negras é o movimento social mais bem sucedido do Brasil. Jaqueline Fernandes acredita que esse poder de articulação diz sobre as mulheres negras de todo o planeta.
“Diz sobre a nossa potência, mesmo quando a sociedade está estruturada para negá-la. Embora sejamos mais numerosas no Brasil do que nos EUA, o alcance mundial e midiático das produções de mulheres negras norte-americanas têm sido espelho para mulheres negras de todo o mundo. Temos sido parte fundamental dos movimentos por equidade e justiça. É impossível continuar ignorando ou negando o que estamos fazendo. Todas as alternativas passam por nós. Somos mulheres negras em diáspora e, cada vez mais certas de que as trocas, intercâmbios e saídas coletivas são o caminho. Mais do que nunca, queremos estar em todos os lugares”, destaca Jaqueline.
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Edição: Flávia Quirino