Dezenas de pacientes e representantes de associações de usuários protestaram na sede do Conselho Federal de Medicina (CFM), na manhã desta sexta-feira (21), contra a Resolução 2324/2022, publicada na semana passada pela autarquia. A nova norma orienta os médicos a não receitarem medicamentos à base de Cannabis para pacientes, exceto em quadros de epilepsia refratária em crianças e adolescentes. Só estão mantidos os tratamentos com a substância para pacientes com Síndrome de Dravet, Lennox-Gastaut ou Complexo de Esclerose Tuberosa.
De acordo com dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que em 2019 autorizou a fabricação e a importação de produtos com Cannabis para fins medicinais, estima-se que mais de 100 mil pacientes façam algum tipo de tratamento usando derivados da maconha no Brasil. Além disso, mais de 66 mil medicamentos à base de Cannabis foram importados em 2021. Pelo menos 50 países já regulamentaram o uso medicinal e industrial da Cannabis e do Cânhamo.
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"Os pacientes estão desesperados com a possibilidade de interrupção dos tratamentos, porque bota em xeque à atuação dos médicos, que é regida pelo CFM", afirma Filipe Suzin, fundador da Associação Curando Ivo, de Goiás, que é um projeto de pacientes, familiares e colaboradores para fortalecer os direitos de pacientes que usam cannabis medicinal. A associação, que tem autorização para cultivo e fabricação de medicamentos, foi criada a partir da história de Seu Ivo, que tem Alzheimer e teve uma reviravolta muito positiva após iniciar seu tratamento com derivados da maconha. Filho de Ivo, Filipe também usa Cannabis medicinal para o tratamento de leucemia, um tipo de câncer no sangue.
"Só no Brasil tem mais de 1,4 milhão de pacientes com Alzheimer, que poderiam ter acesso a essa alternativa de tratamento. Atualmente, meu pai usa o THC derivado da Cannabis. Com o tratamento, ele passou a dormir bem, comer bem e ficar mais tranquilo", explica Filipe, ao lembrar dos momentos de dificuldade, antes do tratamento do maconha medicinal, em que seu pai tinha reações violentas e era muito dependente. Já em relação ao seu próprio tratamento, Filipe Suzin destaca a eficácia da maconha, que ele usa na forma vaporizada, com autorização judicial, e ajuda a conter as reações adversas da quimioterapia, como náuseas e dores.
Quem também está preocupado é Vinícius Ribeiro Vasconcelos, pai de Lucas, de 13 anos, que tem transtorno do espectro autista e faz tratamento com um medicamento à base de Cannabis há cerca de 6 meses. "Melhorou muito a situação dele, em termos comportamentais, desde o início do tratamento", explica Vasconcelos. O medicamento foi prescrito por uma neurologista e é importado do Reino Unido, com autorização da Anvisa.
"Eu espero que essa situação seja revista o quanto antes e espero também que não tenha cunho político, de negacionismo da ciência, nesse debate, nem tampouco que seja lobby da indústria farmacêutica. O CFM deveria favorecer esses entendimentos e não restringir os médicos", critica Vasconcelos.
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Segundo Thaís Saraiva, da True Hemp Community, uma entidade que articula consultas, pesquisa e orientação jurídica para pacientes de Cannabis medicinal, muitos usuários regulares da planta já estão tendo seus tratamentos suspensos por planos de saúde e até tendo autorizações judiciais de uso sendo revistas após a nova resolução do CFM. Ela também critica o que considera uma violação constitucional da norma. "Proibiram médicos de dar palestra fora do ambiente acadêmico. Uma violação grave à liberdade de expressão e à difusão do conhecimento".
Eficácia comprovada
Para Vinícius Ximenes, médico de família e comunidade e diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, a resolução do CFM ignora um clima de entendimento que vem sendo construído há 10 anos no país, envolvendo associação de pacientes e familiares, Ministério Público, Poder Judiciário, autoridades sanitárias, além médicas e médicos prescritores.
"Há uma pacificação em relação ao tema que tem trazido benefício, especialmente os pacientes com tratamento refratários, que são aqueles que já usaram outras medicações e a Cannabis medicinal se coloca como alternativa terapêutica interessante e efetiva. Essa norma, no entanto, cria uma insegurança jurídica e sanitária enorme para esses pacientes", observa.
Quando publicou a nova resolução, o CFM argumentou que o texto elaborado após revisões científicas sobre as aplicações terapêuticas e a segurança do uso do canabidiol. "O trabalho considerou publicações feitas de dezembro de 2020 a agosto de 2022. Também foram colhidas mais de 300 contribuições por meio de consulta pública aberta para médicos de todo o país", disse a entidade. A norma anterior era de 2014 e deveria ter sido revista em 2017. Ximenes rebate o argumento científico, ao lembrar que o Conselho desconsiderou as pesquisas realizadas nos últimos 10 anos.
"Existem estudos, nos EUA, por exemplo, que mostram uma queda expressiva, nos estados que utilizam Cannabis medicinal como alternativa, do uso de opiáceos. Os opiáceos são medicamentos usados no combate à dor, com alto poder de dependência química, podem causar depressão respiratória, com fortes efeitos colaterais. Ou seja, a Cannabis tem mostrado muita eficácia", explica. O médico destaca ainda que o uso da maconha medicinal não é para tratamentos generalizados, mas sim terapias individualizadas para pacientes que têm históricos específicos que mostram o benefício da Cannabis medicinal.
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Além disso, segundo o médico, a nova resolução surge em um contexto "estranho". "Por que agora, dentro de um período eleitoral, no momento em que há uma discussão de pauta de costumes, eles voltam com essa discussão? É um contexto estranho. Me dá uma sensação que o CFM optou pela confusão, pelo desentendimento. De certa forma, parece que as motivações foram outras que não a dos pacientes que estão precisando de tratamento", critica.
Desdobramentos
Após a manifestação no CFM, uma comitiva de médicos e representantes de pacientes foi recebida pelo presidente em exercício do CFM, Jeancarlo Cavalcante, que prometeu levar as demandas para a diretoria na próxima semana, quando haverá reunião da direção do conselho.
"O diálogo foi cordial e atento. A gente pontuou a revogação da resolução e, a partir disso, colocarmos às entidades à disposição do Conselho para escutar todos os lados", afirmou Vinícius Ximenes.
No dia 20 de outubro, em meio às reações negativas contra a resolução, o CFM decidiu abrir consulta pública à população sobre o assunto, prevista para ocorrer de 24 de outubro a 23 de dezembro deste ano.
A norma do CFM também está sendo alvo de uma investigação por parte do Ministério Público Federal (MPF), aberta essa semana, que quer apurar a legalidade da medida.
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Edição: Flávia Quirino