"Essa é a eleição mais importante da história do Brasil. O que a gente está decidindo é se vamos iniciar uma recuperação da democracia e da ordem constitucional ou se vamos escolher um caminho de aprofundamento autoritário". Esta é a magnitude do desafio brasileiro nas eleições em segundo turno neste domingo (30), na ótica do cientista político Luís Felipe Miguel, professor titular da Universidade de Brasília (UnB), onde leciona desde 1996 no Instituto de Ciência Política (Ipol).
Autor de obras importantes da teoria democrática no Brasil na atualidade, como "Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil" (Autêntica, 2022) e "O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016" (Expressão Popular, 2019), Miguel projeta um cenário otimista de provável vitória de Lula (PT) sobre Jair Bolsonaro (PL), mas prevê, ao mesmo tempo, imensos desafios de governança para o petista, seja pela força da extrema-direita que emergiu das urnas, seja pela necessidade de responsabilizar seu líder pelo descalabro dos últimos anos.
"É preciso conter essa extrema-direita. Vai ser difícil, mas o governo Lula, que esperamos ser eleito no domingo, vai ter que pensar, pra começar, em punir os cabeças do bolsonarismo por todos os crimes que cometeram nos últimos anos. (...) Tem que mostrar para a extrema-direita que existe consequência pelos seus atos, porque eles ainda operam na percepção da impunidade. Se a gente não for capaz de fazer isso, podemos prever uma vida pública muito degradada no Brasil por muito tempo", aponta.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político também analisa a dinâmica das duas campanhas presidenciais que se enfrentam neste segundo turno. Para Luís Felipe Miguel, o PT e seus aliados souberam reverter a enorme desvantagem que a esquerda e os setores democráticos tiveram nos últimos anos nas redes sociais, que se tornou a principal arena de disputa do debate público e eleitoral no país. Para ele, nomes como André Janones e Felipe Neto foram cruciais para o sucesso dessa estratégia de guerrilha informacional nas redes.
"Se conseguiu algo este ano que não se conseguiu em 2018, e em nenhum outro momento nos últimos quatro anos, que foi virar a iniciativa [do debate político], o lado de cá pautar o lado de lá, colocando o bolsonarismo tendo que se defender, em vez de apenas atacar. Isso foi central. Não é uma questão de gostar ou não, mas a gente precisa saber que, daqui pra frente, um front essencial de batalhas vai se dar nessas redes", avalia. Miguel também comenta o papel dos meios de comunicação num dos momentos mais dramáticos da história do Brasil e opina sobre o papel que a esquerda e os movimentos populares devem desempenhar no próximo período.
Confira a íntegra da entrevista:
Professor, o presidente Bolsonaro fez, ao longo do seu mandato, ataques aos princípios mais básicos da democracia liberal, como jogar suspeição sobre as urnas eletrônicas, desrespeitar autonomia dos poderes, fazer ataques à imprensa e a jornalistas, e atacar outras liberdades civis. É possível prever que uma eventual reeleição dele causaria uma ruptura definitiva desse modelo de democracia constituído no Brasil desde 1988, a partir nova República? Nesse sentido, que importância você dá para essas eleições presidenciais, em comparação com as anteriores?
Primeiro, essa ruptura já aconteceu. A verdade é que o modelo institucional que foi construído a partir da Constituição de 1988 foi severamente fraturado com o Golpe de 2016 e isso se agravou com a eleição do Bolsonaro. O que a gente tem hoje é um regime em que há uma enorme dificuldade para que o Estado de Direito fique vigente. Nós vemos ataques muito sérios e permanentes contra instituições básicas do modelo democrático liberal e uma reação muito fraca dos organismos institucionais que deveriam proteger tanto a Constituição quanto a democracia. O que a gente pode esperar de um eventual segundo mandato do Bolsonaro é, na verdade, um agravamento dessa situação. O contexto internacional mostra.
Quando governantes de extrema direita chegam ao poder, eles iniciam um desmonte das garantias democráticas e liberais e, quando eles conquistam um segundo mandato, eles aceleram esse processo de destruição do regime. Bolsonaro está dando todos os sinais que esse é o projeto dele, chegando a falar em intervenção no Supremo Tribunal Federal (STF), ou seja, um ataque direto à independência dos poderes, um elemento básico da ordem política liberal.
Então, sem dúvida nenhuma, o que a gente tem pela frente, caso Bolsonaro consiga se manter no poder, é um deslizamento para um regime abertamente autoritário. Ele não vai fazer anunciando que está fazendo isso, mas solapando as instituições por dentro, como ele já faz agora, mas num ritmo muito mais acelerado. É a eleição mais importante da história do Brasil. O que a gente está decidindo é se vamos iniciar a recuperação da democracia e da ordem constitucional, ou se vamos escolher um caminho de aprofundamento autoritário.
É a eleição mais importante da história do Brasil
Esse segundo turno marcou uma dinâmica bastante movimentada no comportamento das campanhas. Num primeiro momento, a campanha de Lula embarcou um pouco, especialmente nas redes sociais, na pauta de costumes, mas parece ter reajustado o prumo nas últimas semanas em torno de questões econômicas e materiais concretas. Já o Bolsonaro enfiou os pés pelas mãos no caso das meninas venezuelanas, no episódio envolvendo Roberto Jefferson, e na revelação dos planos do ministro Paulo Guedes para desindexar o salário mínimo de aumentos inflacionários, alterar regras do imposto de renda prejudiciais à classe média, entre outras medidas antipopulares. Como você analisa as condições de chegada das campanhas às vésperas da eleição? Há espaço para uma virada surpreendente de Bolsonaro?
De fato, a campanha do Lula ficou baqueada com o resultado do primeiro turno, que foi surpreendente para o Bolsonaro, e ela demorou para ajustar o prumo, mas ajustou. O que a gente viu foi a campanha do Lula sendo capaz de sair da defensiva e voltar a pautar o debate. Houve uma reanimação da militância, a campanha voltou às ruas e conseguiu um trabalho mais coordenado nas redes sociais. Nisso, não há dúvida, o deputado André Janones teve um papel importante, no sentido de elaborar uma estratégia de guerrilha informacional nas redes, e um esforço de coordenação do pessoal da comunicação do Lula. E o Bolsonaro, como você falou, sofreu vários revezes importantes e ficou na defensiva por conta do que ele mesmo fez.
Foram vários episódios que levaram a campanha do Bolsonaro a um esforço muito grande de contenção de danos, tanto de tempo quanto de dinheiro para inundar as redes de respostas. Claro, a eleição só se decide no domingo, mas acho muito difícil reverter o quadro. Existe uma tendência de alta do Lula, o Bolsonaro está na defensiva e dando sinais inequívocos de que está pressagiando a derrota, com esses factoides que ele está inventando para tentar desmerecer o resultado da eleição, com gente do lado dele chegando a sugerir o adiamento da votação. E um outro dado importante, que é São Paulo. Seria fundamental para eles estabelecerem uma dianteira grande no estado, para tentar compensar a derrota que é certa e grande no Nordeste para o Lula, e a derrota que se anuncia em Minas Gerais. Só que em São Paulo, a situação está virando, o Haddad está crescendo e o Tarcísio [de Freitas] está muito enrolado com a revelação das circunstância daquele assassinato ocorrido em Paraisópolis. Tudo indica que teremos a vitória do Lula no domingo.
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Em 2018, a esquerda e mesmo os segmentos de centro foram surpreendidos e atordoados por esses novos circuitos comunicativos abertos pela forma de comunicação digital feita pela campanha bolsonarista na internet. Você sente que nessas eleições a esquerda conseguiu equilibrar um pouco mais esse jogo sujo nas redes? Você citou o André Janones, como alguém que se destacou nesse trabalho.
Em 2018, a esquerda pagou um preço muito alto por ter menosprezado a importância desses novos circuitos na decisão do voto. A direção da campanha a presidente do Haddad, na época, trabalhou no registro antigo, quer dizer, o que importava era o horário eleitoral na televisão e pronto. Deu uma atenção muito reduzida ao que estava acontecendo no WhatsApp e nas mídias sociais em geral. Eu acho que a ficha caiu, mas não é fácil, porque não existe ainda uma linguagem da esquerda para espaço. Esses espaços são ainda fortemente hegemonizados pela direita e, sobretudo, pela extrema-direita, que tem vantagens, que usa a linguagem ágil, superficial e exige pouca atenção do público. É a reprodução de preconceitos, do senso comum mais raso. Já a esquerda ainda está em busca dessa linguagem. E acho também que tem dois elementos que precisamos levar em conta.
Os engajamentos de comunicadores muito competentes e experientes nessas novas linguagens, e eu cito aqui o Felipe Neto, em particular, que tem feito um trabalho muito efetivo de contestação das mentiras da extrema-direita, para uma público diversificado, um público fora da bolha. E houve um esforço, e aí o Janones foi importante, de coordenação de comunicação da campanha do Lula nas redes. Muita gente torceu o nariz porque é uma linguagem diferente do padrão da linguagem da esquerda, mas absolutamente necessária nesse momento para criar uma barreira mais efetiva para a disseminação das chamadas fake news pela extrema-direita. Se conseguiu algo este ano que não se conseguiu em 2018, e em nenhum outro momento nos últimos quatro anos, que foi virar a iniciativa [do debate político], o lado de cá pautar o lado de lá, colocando o bolsonarismo tendo que se defender, em vez de apenas atacar. Isso foi central.
Não é uma questão de gostar ou não, mas a gente precisa saber que, daqui pra frente, um front essencial de batalhas políticas e eleitorais vai se dar nessas redes.
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O resultado do primeiro turno trouxe uma ascensão marcante de figuras de extrema-direita e fundamentalistas religiosos, muitos dos quais ocuparam o lugar da da direita tradicional, como a Damares Alves, eleita senadora pelo Distrito Federal. Você acha que houve uma consolidação nessa mudança de perfil político dos candidatos eleitos que já havia sido aberta nas eleições de 2018, quando o bolsonarismo eclodiu?
Não tem como negar esse fato. A gente tem uma mudança do cenário político brasileiro, houve uma desidratação profunda da direita tradicional. O quase fim do PSDB mostra isso e o seu lugar foi ocupado por extremistas. Isso é muito grave e mostra que teremos um cenário muito difícil daqui pra frente. Esse pessoal não apenas desapareceu. Pelo contrário. Aqueles, dentre eles, que fizeram um esforço para assumir uma postura mais moderada, menos radical, e talvez até mais racional, eles foram fortemente punidos pelas urnas. O caso da Joice Hasselmann é emblemático, ela caiu de mais 1 milhão para apenas 13 mil votos para deputada federal em São Paulo. Por outro lado, aqueles que se mantiveram ou se aproximaram de um tom mais extremista foram, em grande medida, premiados.
Tivemos a eleição de um punhado de senadores inacreditáveis. A Damares [Alves] é um exemplo, mas não apenas. Tem o Mourão, no Rio Grande do Sul, que é um fascista, o astronauta em São Paulo, entre outros. Eles ultrapassaram figuras altamente respeitáveis da esquerda, do centro e mesmo da direita tradicional. Isso chegou para ficar e a gente vai ter que ver como lidar. A presença da extrema-direita não é apenas a presença de um agente político com um programa extremista. É que essa extrema-direita age para impedir qualquer forma de avanço no debate público, age para neutralizar qualquer tentativa de incorporar algum grau de racionalidade e empatia no debate público. É preciso conter essa extrema-direita. Vai ser difícil, mas o governo Lula, que esperamos ser eleito no domingo, vai ter que pensar, pra começar, em punir os cabeças do bolsonarismo por todos os crimes que cometeram nos últimos anos.
Novamente, a experiência internacional mostra que extrema-direita gosta das bravatas, mas tem medo e se acovarda diante das consequências jurídicas. Seria importante que o próximo governo fosse capaz de colocar essas figuras nos tribunais, sem necessidade de qualquer manobra do tipo Lava-Jato, mas sim fazer Justiça da forma reta que a lei preconiza. As manobras do Bolsonaro contra o regime eleitoral e a democracia, os crimes cometidos durante a gestão da pandemia, a corrupção dele, de sua família e auxiliares, dão motivos de sobra para colocá-lo na cadeia. Isso é importante, tem que mostrar para a extrema-direita que existe consequência pelos seus atos, porque eles ainda operam na percepção da impunidade. Se a gente não for capaz de fazer isso, podemos prever uma vida pública muito degradada no Brasil por muito tempo.
Essa eleição presidencial tem um forte caráter plebiscitário, que é a ideia de evitar um novo mandato para Bolsonaro. Nesse cenário, especialmente no segundo turno, houve uma ampliação esperada dessa frente política liderada por Lula, com segmentos da centro-direita, franjas importantes da elite econômica, entre outros setores divergentes do programa do PT. Que impacto isso vai ter na execução de um programa mais social pretendido por Lula? E qual papel você acha que os movimentos populares e a esquerda devem cumprir nesse futuro governo?
Vai ser complicado. O fato é que essas forças da extrema-direita que saíram com primeiro turno, com a bancada fortíssima do bolsonarismo no Congresso, a vitória em Minas Gerais e no Rio de Janeiro de governadores aliados ao bolsonarismo, a esquerda fora do segundo turno no Rio Grande do Sul, tudo isso vai reduzir a margem de manobra do governo Lula. E esses aliados da direita tradicional, que não é extrema e seriam os fiadores do governo Lula, eles vão cobrar o preço. O que está se colocando com bastante clareza é a pressão para fazer um governo que vá se limitar à recomposição da institucionalidade liberal-democrática no país, e que vai ter muitíssimo trabalho para dar qualquer passo na recomposição do pouco que tínhamos construído em termos de um colchão de bem-estar social para a população mais pobre do Brasil.
Por outro lado, o Lula sabe que tem que fazer isso, que o destino do governo dele está ligado a ele conseguir dar alguma resposta às premências dessa população mais pobre. Eu acho que o papel da esquerda é, ao mesmo tempo, manter os pés no chão, mas não depreciar o seu programa. É continuar tentando organizar a sociedade, a fim de pressionar por políticas redistributivas, por serviços públicos socializados de qualidade. Temos que continuar pressionando por isso porque a pressão para limitar o horizonte do governo já vai estar dada. Não podemos abrir mão do trabalho de organização das classes populares.
Uma derrota de Bolsonaro, especialmente se for com alguma contundência eleitoral, tende a impactar esse setores de extrema-direita de que forma? É possível prever que eles se desorganizem no próximo ciclo?
Para pensar a desorganização da direita, é preciso punir os Bolsonaro. Ele chegou ao final dessa eleição, mesmo com todas as trapalhadas que fez, mostrou que ele é o grande articulador da extrema-direita no país. Até o Sergio Moro voltou para os braços dele. Sem o Bolsonaro na parada, essa extrema-direita vai se digladiar pela ausência de um sucessor. Mas se ele continuar livre e topetudo, apesar de não ter tido capacidade de organizar um partido, conquistou uma posição agregadora. Ele foi capaz de juntar as viúvas da ditadura, o anticomunismo mais clássico, o fundamentalismo cristão e o ultra mercadismo que o Guedes encarna. Até o partido Novo se tornou um agregado do bolsonarismo. Com ele na parada, a extrema-direita tem vida longa no Brasil.
O jornal The New York Times produziu um material e manifestou posição editorial clara de apoio à candidatura de Lula neste segundo turno, enfatizando especialmente a agenda ambiental, que é o item prioritário da geopolítica atualmente. Não vimos nada perto disso dos meios de comunicação no Brasil. De que forma você analisa o papel da mídia empresarial brasileira nessa conjuntura tão grave?
Os meios corporativos de comunicação estão como sempre estiveram. É de uma covardia impressionante essa incapacidade de produzir qualquer autocrítica sobre suas ações recentes. Ao mesmo tempo que alguns deles, pelo menos, apresentaram o que seriam posições contundentes contra o Bolsonaro, eles nunca foram capazes de romper pontes de negociação com a extrema-direita, e muito menos reconhecer o papel que tiveram com o avanço do bolsonarismo, com o apoio ao golpe [de 2016], a Lava-Jato e a postura nas eleições de 2018. Não tem muito o que esperar deles, embora tenham apanhado muito do Bolsonaro ao longo desse governo. Eles não conseguem abraçar uma defesa sólida da causa democrática no Brasil e continuam com medo de uma democratização mais efetiva do país. Porque sabem que essa democratização fatalmente vai atingi-los. Não tem como democratizar o Brasil sem mexer nesse feudo de meios de comunicação de passa. São democratas de ocasião e oportunistas.
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Edição: Flávia Quirino