É impossível passar pela Argentina sem se deparar com a ideia pública de que a ditadura matou
Argentina 1985 será o representante do país vizinho na premiação do Oscar de 2023. Para quem espera o drama profundo vivido pela professora e mãe Alicia que, no imediato pós-ditadura percebe que sua filha adotiva pode ser uma criança apropriada de uma família de pessoas detidas desaparecidas, em A História Oficial (1985), ou para quem imagina que vai encontrar cenas de ação magistrais como a vivida pelo obsessivo investigador Benjamín em O Segredo de seus olhos (2009), um aviso: o novo filme não atenderá nem a uma e nem a outra expectativa.
Argentina 1985 não envereda pelo caminho de retratar a herança da violência no seio das famílias diretamente atingidas pelo Estado terrorista, também não se adequa à perspectiva das produções que se debruçam em casos específicos de crimes que, por mais que não pareçam, fazem parte do mesmo repertório de ilegalidades e arbitrariedades ditatoriais.
Mas, sim, assim como no caso dos dois outros títulos vencedores da premiação na categoria melhor filme estrangeiro, outra vez a escolha da Argentina para defender o país diante da Academia de cinema é uma história que tem relação com a ditadura militar. Não se trata de coincidência.
Quem tem um pouco de familiaridade com o histórico político do país, sabe que a ditadura figura como marco visível até para turistas menos observadores: as ruas possuem pisos que registram locais de desaparecimento de pessoas, os muros são pintados com a cifra dos 30.000 - número estimado de vítimas - e a insígnia “Nunca Mais” está por toda parte, incluindo as escolas desde os primeiros anos. O dia 24 de março, dia do golpe, é feriado nacional. Ainda que haja um registro de ascensão negacionista, arriscaria sustentar que é impossível passar pela Argentina, sobretudo pela capital Buenos Aires, sem se deparar com a ideia pública de que a ditadura matou, apropriou bebês, desapareceu com parte de uma geração, instaurou medidas econômicas que favoreceram apenas grandes empresários em detrimento do restante da sociedade, usou a fé como ferramenta política. Para tudo isso, a maior parte da sociedade Argentina levanta a bandeira do Nunca Mais.
Acontece que nem sempre o entendimento público a respeito do passado autoritário se deu nesses termos.
Como o título sugere, o filme se passa na longínqua Argentina de 1985, quando começam os julgamentos contra a alta cúpula militar que protagonizou os anos de terror estatal (1976-1983). Havia passado apenas dois anos desde o fim da ditadura. No ano anterior, 1984, a Comissão sobre Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) havia mobilizado uma quantidade expressiva de depoimentos sobre os acontecimentos violentos da ditadura.
Ainda assim, a CONADEP defendeu a tese de que teria ocorrido na Argentina uma `guerra suja`, que os crimes cometidos por agentes de Estado estariam em pé de igualdade às ações protagonizadas pela guerrilha. Essa interpretação foi batizada de Teoria dos Dois Demônios e foi brevemente explorado no filme.
Especialista no tema, o sociólogo Emilio Crenzel compartilhou suas impressões sobre a produção no jornal argentino Página 12. Entre os muitos apontamentos assertivos - por exemplo sobre o lugar secundário que a narrativa concedeu aos movimentos sociais diretamente implicados no processo de judicialização de autores criminais -, um me chamou muito a atenção.
Ao notar que a sala de cinema estava dividida entre pessoas da sua idade, que portanto viveram os anos 1980, e jovens como o seu filho, refletiu que para os mais novos o que veriam na tela seria como ver uma Buenos Aires alheia, com “[…] automóveis pré históricos, cabines de telefone públicos, máquinas de escrever, o cigarro onipresente”. E não era esse o único motivo, a juventude também estranharia o cenário político, “uma democracia recém nascida”, que convivia “com autores de crimes políticos atrozes”, sujeitos que naquele momento “conservam porções substantivas de poder”.
Contudo, a finalização dos trabalhos da CONADEP e os processos judiciais dos 80 não foram o ponto final sobre o passado autoritário argentino. Ao contrário, foi o ponto de partida que alavancou um caminho não apenas ascendente para consolidação dos direitos à memória, à verdade e à justiça.
Após a condenação de oficiais ocupantes de postos de comando das Forças Armadas, leis estabelecidas nos anos consecutivos visaram interromper o processo de criminalização dos agentes, em que pese a contínua atuação da sociedade civil que seguiu denunciando e buscando respostas, por exemplo por meio das Madres e das Abuelas da Praça de Maio.
Nos anos 90, com a chegada à vida adulta de uma geração de pessoas órfãs de pais desaparecidos pelo Estado ditatorial, novas demandas se colocam na arena pública. Na sequência, com a chegada de Nestor Kirchiner à presidência, as políticas de não esquecimento foram fortalecidas e dotadas de permanência.
Imagino que você que lê este texto deve estar pensado sobre nosso panorama brasileiro, adivinhei?
Talvez você já saiba que por aqui nenhum oficial foi, de fato, condenado à prisão por atuação criminosa durante a ditadura. É verdade que nossos anos 80 também tiveram a publicação de um livro chamado Brasil Nunca Mais, fruto de pesquisa rigorosa da sociedade civil sobre denúncias oriundas do Superior Tribunal Militar - setor responsável pelas pessoas presas por motivação política. Ainda assim, a mim não parece absurdo supor que à juventude atual não lhes pareceria estranho olhar para o cenário político da década de 1980: um primeiro presidente depois de 21 anos de ditadura que chegou ao poder a partir de pactos que não sustentaram eleições diretas, uma anistia que perdoou os crimes de agentes de Estado e que, mais uma vez, garantiu o lugar de sossego para as Forças Armadas.
Apesar de poder incorrer no risco de conjecturar no vazio, atrevo-me a dizer que talvez a juventude de hoje, acostumada com os recorrentes pedidos de intervenção militar encorajados pelo próprio presidente, estranhariam mais os anos 90 e os 2000 com suas políticas de memória, ainda que um tanto acanhadas.
A lei de anistia brasileira permanece em vigor.
Os julgamentos a agentes argentinos implicados nos crimes da ditadura também seguem ainda hoje. Com isso, não pretendo defender a máxima de que nós e a Argentina estamos em oposição extrema. O que gostaria de provocar aqui é o efeito de que ainda que conte com um processo de judicialização, os direitos à memória, verdade e justiça não estão garantidos na Argentina. Talvez porque essa garantia de irreversibilidade e de não retorno não seja um patamar alcançável se pensarmos que se trata de um degrau a mais na escada da democracia, onde só se sobe. Talvez essa "garantia" seja a construção diária do que é inegociável, o reforço dia a dia do nunca mais.
Nesse cenário, o filme Argentina 1985 cumpre o grande feito de apresentar e aproximar outro tempo político da geração atual com a recordação de que nada está garantido, sempre em processo de construção. A nós aqui no Brasil, o filme também convida a pensar sobre nossos ontens e a como queremos construir nosso hoje.
Este texto, dedico para minhas grandes amigas e meus grandes amigos, que dividiram comigo os corredores da Comissão Nacional da Verdade, os expedientes infinitos, o trabalho intenso e a vocação a defender o nosso NUNCA MAIS.
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*Paula Franco é doutoranda em História pela UnB, vinculada ao Instituto Gino Germani da Universidade de Buenos Aires. É editora e colunista do site História da Ditadura e pesquisa temas ligados à justiça de transição e comissões da verdade da América Latina.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
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Edição: Flávia Quirino