Geralmente sacrificado nas políticas públicas nacionais e internacionais de conservação, o Cerrado corre risco de não ser contemplado no texto da legislação europeia sobre importações livres de desmatamento. Preocupa também o teor do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, elaborado sem a transparência devida e sem considerar as ponderações da sociedade civil. Diante disso, organizações brasileiras levaram à 27ª Conferência do Clima (COP27), em Sharm El-Sheikh, ações para subsidiar o debate público sobre a importância global da savana mais biodiversa do mundo, e tentar assim garantir a proteção imediata de biomas não-florestais.
Estão em curso esforços para incluir savanas e campos (classificações que caracterizam o bioma Cerrado) nas negociações entre Brasil e parceiros comerciais internacionais. Estiveram presentes no Egito com esse discurso urgente de ser colocado em prática a Rede Cerrado; Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN); WWF; Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ); Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM); Instituto Cerrados; Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC); FASE; a deputada federal eleita Célia Xakriabá e outras instituições e lideranças de povos e comunidades tradicionais.
A agenda de eventos paralelos, conversas e reuniões atingiu o ponto alto no encontro das organizações com a ex-Ministra do Meio Ambiente e deputada federal eleita Marina Silva. Ela ouviu sobre o Cerrado, reforçou o compromisso de desmatamento zero em todos os biomas a partir do próximo governo federal e recebeu 77 minutas entregues pelo Observatório do Clima para execução da pasta ambiental nos primeiros cem dias de gestão, com a intenção de recuperar a credibilidade brasileira no campo da mitigação das mudanças climáticas.
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O Cerrado ocupa uma área de mais de 2 milhões km², sendo a savana mais sociobiodiversa do mundo, abrigando 5% da biodiversidade do planeta – metade endêmica – e cerca de 30% das espécies brasileiras. O bioma tem importância fundamental para a segurança hídrica e energética: das 12 bacias hidrográficas mais importantes do país, oito delas nascem no Cerrado, que ainda é responsável pela recarga dos aquíferos Bambuí, Urucuia e Guarani, o que lhe confere a condição de “berço das águas do país” ou “a caixa d’água do Brasil”. Esse título, entretanto, corre risco.
Foi divulgado na primeira semana da Conferência um dado inédito e alarmante de que o Cerrado pode perder um terço da sua vazão de água até 2050. É o que aponta o estudo The heavy impact of deforestation and climate change on the streamflows of the Brazilian Cerrado biome and a worrying future, apoiado pelo ISPN. Segundo a pesquisa, o bioma deve perder 34% da sua vazão de água nos próximos 28 anos. O estudo concluiu que o desmatamento para agropecuária é a principal causa dessa diminuição, responsável por 56% do impacto. Podem ser perdidos até 23.653 m³/s, o que equivale à vazão de oito rios Nilo.
Para além do fornecimento de água e energia, a riqueza sociocultural do bioma é imensa. No Cerrado, vivem milhares de povos e comunidades tradicionais, grande parte ainda invisibilizada nos mapas oficiais. Estamos falando de povos indígenas, mas também de quilombolas, geraizeiros, vazanteiros, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos, pescadores artesanais, fundos e fechos de pasto, apanhadoras de flores sempre vivas, entre outros segmentos com reconhecimento no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT).
Oficialmente, hoje existem 636 comunidades tradicionais no Cerrado, segundo dados da Fundação Palmares, Funai e IBGE. Entretanto, levantamento do ISPN e do IPAM indica que o número real de comunidades no bioma é 3,5 vezes maior do que mostram os dados do governo. Estes povos exercem papel estratégico na conservação da biodiversidade.
Embora guarde toda essa riqueza socioambiental, o Cerrado é considerado a “fronteira permitida” e seu território não recebe a mesma atenção de outros biomas, como a Mata Atlântica e a Amazônia.
Apenas 8% de sua área está abrigada por áreas protegidas. Além de constituir um número pequeno, as unidades de conservação existente no bioma são de pouca extensão e estão distribuídas, em área, em categorias de manejo mais flexíveis - 62,9% da área delas são constituídas por áreas de proteção ambiental; 28,8% são parques e 8,3% pertencem as demais categorias de manejo previstas na Lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC).
Outro fator desfavorável à proteção do bioma são os percentuais de reserva legal estabelecidos pela legislação florestal. No Cerrado, entre 20-35% de vegetação nativa, está protegida na condição de reserva legal, enquanto na Amazônia esse percentual pode chegar a 80%.
O bioma é considerado um dos hotspots para conservação da biodiversidade devido ao alto endemismo e as fortes pressões antrópicas, especialmente pelo avanço da fronteira agrícola na região. Nos últimos 36 anos o Cerrado perdeu 16,8 milhões de hectares para a soja. A devastação do bioma já alcança 49% da vegetação nativa e segue avançando.
No primeiro semestre de 2022, uma área equivalente ao Distrito Federal foi desmatada, o que corresponde a aproximadamente 472.816 hectares. Nesse período, foram detectados mais de 50 mil alertas de desmatamento. Somente entre abril e junho, houve um aumento de 15% na área desmatada no bioma em relação ao mesmo período do ano passado: foram 291 mil hectares derrubados.
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É importante que a sociedade compreenda que o Cerrado em pé é fundamental para a garantia de segurança alimentar, segurança hídrica, segurança energética, segurança climática global e manutenção da sociobiodiversidade do planeta. Os povos, as comunidades tradicionais e agricultores familiares são essenciais para a conservação do meio ambiente e do equilíbrio climático.
Na COP-27, celebramos a atenção pública que foi direcionada ao bioma, mas é preciso muito mais.
É preciso que isso se traduza em políticas públicas efetivas para conservação também das savanas e campos. Passada a Conferência, é essencial que a normativa europeia em negociação garanta a inclusão de outros ecossistemas naturais no seu escopo e que as políticas públicas nunca se esqueçam de que sem Cerrado todos os outros biomas também ficam ameaçados, incluindo a nossa Amazônia.
Acreditamos em um outro modelo de desenvolvimento, sem necessidade de desmatamento de novas áreas em nenhum lugar, que gere renda às comunidades com conservação ambiental e proteção das culturas tradicionais.
*Patrícia Silva é advogada, mestra em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (FUP/UnB) e assessora de políticas públicas do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).
**Raisa Pina, doutoranda em Antropologia Social (PPGAS/UnB) e assessora do ISPN.
**Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.
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Edição: Flávia Quirino