Uma decisão da Justiça Federal que anulou a aplicação da lei de cotas em concurso para professor tem mobilizado a comunidade acadêmica da Universidade Federal de Goiás (UFG). Por determinação do juiz federal Urbano Leal Berquó Neto, da 8ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de Goiânia, a universidade cancelou, na semana passada, a nomeação e posse de Gabriela Marques Gonçalves no cargo de docente da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da instituição de ensino.
A vaga, uma das 15 oferecidas em concurso para professor de diversas áreas, ocorrido em março, era destinada exclusivamente a candidatos negros. Gonçalves obteve o terceiro lugar na seleção entre todos os candidatos aprovados para a cadeira de professor na FIC, mas como era a única candidata negra aprovada na vaga reservada, foi nomeada para o cargo. Contrariando o edital, o candidato Rodrigo Gabrioti de Lima ingressou na Justiça Federal e obteve decisão liminar (provisória) favorável. Com isso, ele foi nomeado para o cargo no lugar de Gabriela.
Desde então, uma intensa mobilização de estudantes, professores e sociedade civil tenta reverter a medida. O argumento de Lima, acatado pelo juiz, é o de que a Lei de Cotas só poderia ser aplicada quando o número de vagas oferecidas fosse igual ou superior a três e, como era apenas uma vaga na FIC, a reserva racial não deveria ser aplicada.
A Lei n° 12.990/2014 reserva, a pessoas negras, 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, sempre que o número de vagas oferecidas for igual ou superior a três. Desde 2019, baseada em uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF), a UFG estabeleceu uma forma de seleção de professores para garantir a efetividade da lei: a cada cinco vagas abertas para professor, de diferentes áreas, uma deveria ser destinada aos candidatos que se autodeclararem negros, observando-se a ordem cronológica da entrada dos pedidos de concurso pelas Unidades Acadêmicas e Unidades Acadêmicas Especiais junto à Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (Propessoas).
Como a vaga de professor para a FIC foi o quinto pedido que entrou no sistema da universidade, o cargo passou a ser exclusivo para candidatos negros. Nesse mesmo concurso, outros dois cargos de professor também foram reservados a candidatos negros, sem qualquer questionamento judicial.
Racismo estrutural
A interpretação da Justiça Federal revoltou alunos da instituição. O Coletivo de Estudantes Cotistas da Pós-graduação da UFG lançou uma petição online para denunciar o que consideram um descumprimento da aplicação da lei de cotas. Eles chegaram a fazer um ato, na última segunda-feira (21), para chamar atenção para o caso, e prometem repetir a mobilização.
"Se você tem uma lei, ela deve ser cumprida. O que estamos vendo é o racismo estrutural operando para impedir a ocupação legítima de uma vaga conquistada por um candidata negra", afirma Zanza Gomes, doutoranda UFG e integrante do coletivo de estudantes cotista.
Ela enfatiza que Gabriela Marques foi aprovada em todas as etapas da seleção, como prova teórica, didática, de títulos e apresentação de memorial e, mesmo assim, vê seu direito negado.
"O edital era claro sobre ser uma vaga reservada e o candidato que entrou na Justiça se vale do privilégio branco para questionar uma instituição, no caso a UFG, que tem legitimidade de propor um modelo de concurso que assegure o cumprimento da lei de cotas", critica Zanza Gomes.
Referência
Procurada, a UFG defendeu o atual modelo de seleção de professores, que inclui uma regra para garantir a aplicação da lei de cotas. "A nossa expectativa é a de que o juiz reverta a decisão. Ela desrespeita os esforços da universidade em desenvolver estratégias para aplicar a lei de cotas. O racismo estrutural é um problema sério que precisa ser equacionado", aponta Luciana de Oliveira Dias, secretária de inclusão da universidade.
Ela explica que, até 2019, a UFG tinha dificuldade de aplicar a lei na seleção de docentes porque, normalmente, o concurso era realizado por unidade acadêmica e o número de vagas oferecidas era sempre inferior a três. "Como a gente passou a aplicar? Recebendo os pedidos da unidade e, a cada cinco, uma vaga, que corresponde a 20%, é para cotas. Mesmo que sejam áreas diferentes, o cargo é o mesmo: docente do magistério superior", explica. O modelo adotado pela UFG passou a ser referência para outras instituições públicas de ensino superior. "Temos sido convidados para apresentar nosso modelo em diferentes instituições. Nossa universidade é comprometida com a luta antirracista", conta.
A diretoria do Sindicato dos Docentes das Universidades Federais de Goiás (ADUFG) divulgou nota condenando a suspensão da nomeação da candidata cotista aprovada em concurso público da universidade. “Cotas raciais representam uma avanço histórico da na luta do movimento negro e contribuem para a construção de ambientes capazes de abarcar as muitas diferenças que existem na comunidade acadêmica. A entidade espera que a decisão judicial seja revertida”, diz um trecho da manifestação. Diversas unidades acadêmicas da UFG também têm se manifestado contra a decisão.
Cansaço e luta
Doutora em Comunicação Audiovisual pela Universitat Autònoma de Barcelona, na Espanha, Gabriela Marques Gonçalves falou ao Brasil de Fato sobre como se sente em meio a essa situação.
"Tem sido bem difícil porque são várias questões que estão envolvidas. Acho que a principal é o questionamento das cotas em si. Essa lei é resultado de muita luta do movimento negro e mesmo com sua aprovação, a gente sabe a fragilidade que ela ainda tem, especialmente nas universidades. Muitas vagas destinadas às cotas acabam não sendo preenchidas por pessoas negras, por diferentes motivos", relata.
Um desses motivos, explica, é justamente a forma elitizada como o acesso à ciência ainda se dá no Brasil. "Esse âmbito acadêmico é muito exigente, o que transforma o processo seletivo em algo muito desgastante, é preciso um esforço muito grande para alcançar os 'critérios de excelência', que muitas vezes são também classistas, machistas e racistas, para conseguir passar em um concurso para professor. E isso é ainda mais difícil para as pessoas negras e, se for mulher, ainda pior", analisa.
O advogado de Gabriela Marques ingressou com recurso no Tribunal Regional Federal da 1ª região (TRF1), em Brasília, para reverter a decisão liminar. A UFG também recorreu na Justiça. Além disso, próprio juiz federal ainda vai analisar o caso no seu mérito e conceder uma sentença final em primeira instância.
Para a professora, há um cansaço emocional porque o questionamento sobre as cotas acaba sendo um questionamento sobre a capacidade pessoal das pessoas, o que não corresponde à realidade.
"Eu venho me preparando para ser professora há muitos anos. Apresento trabalho em congressos desde a graduação, recebi prêmio da própria Intercom [Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação] com trabalho que desenvolvi com amigos de curso, me mudei de estado para fazer meu mestrado, mudei de país para fazer meu doutorado, nas duas ocasiões consegui bolsa da Capes, tenho artigos publicados em revistas de impacto, fui professora em instituições privadas e na UFBA como substituta, tenho trabalhado com pesquisadores europeus, publicações em três idiomas, então eu sei que não cheguei até aqui à toa. Então, é muito triste ter isso tudo questionado na Justiça, e ainda mais de uma forma desrespeitosa com a política de cotas e com alunas e alunos cotistas da universidade", desabafa.
Apesar disso, ressalta Gabriela Marques, é preciso seguir lutando contra opressões históricas que ainda se reproduzem no acesso a oportunidades profissionais por pessoas negras. "Então, fica esse sentimento de frustração, mas, ao mesmo tempo, a certeza da necessidade de continuar lutando e cobrando pelas políticas de reparação social e história que as populações racializadas têm direito nesse país onde o racismo está tão incrustado".
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Edição: Flávia Quirino