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Coluna

A mão da limpeza

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No dia 25 de novembro um adolescente invadiu duas escolas matou 4 pessoas e feriu outras 12 - Twitter/Reprodução
O Brasil edificou-se nas relações entre escravistas e escravizados.

O jornal O Estado de S. Paulo divulgou em suas redes sociais informações sobre o ataque neonazista em uma escola de Aracruz, no Espírito Santo. Na publicação, feita em 26 de novembro, uma imagem de mãos negras segurando uma arma estampava a notícia. O assassino, um adolescente de 16 anos, foi identificado. Ele é branco e usava símbolos nazistas durante o ataque. O jovem matou, em 25 de novembro, três pessoas. A quarta vítima veio a falecer no dia seguinte.

O grupo do Jornal O Estado de São Paulo é uma empresa diletante que representa a classe econômica brasileira dominante. Na cidade de São Paulo, faz parte do pensamento aristocrático que permanece na elite tradicional paulistana. Portanto, não causa espanto uma mão negra segurando uma arma de fogo, que é o principal símbolo do nazifascismo brasileiro.

Como se sabe amplamente, a ideologia nazista é eurocêntrica e tem como um de seus alvos centrais, os povos afrodescendentes. É como se a direita liberal tentasse, através da mão negra estampada na capa do referido jornal, limpar a culpa dos verdadeiros responsáveis pelo clima de violência política instalado no país nos últimos anos.

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Ao longo do século 17, observamos que a participação dos negros no Brasil colonial aconteceu a partir do momento em que a colônia portuguesa teve a necessidade de obter um grande número de trabalhadores para ocupar, a princípio, as grandes fazendas produtoras de cana-de-açúcar. Com a já realizada exploração e dominação do litoral africano, os portugueses buscaram nos negros a mão de obra escrava para ocupar tais postos de trabalho no solo brasileiro.

No Brasil, a força de trabalho dos negros foi sistematicamente orientada pela lógica da violência.

Mesmo com a abolição da escravatura, negras e negros ainda sofrem com a condição de ser “a mão da limpeza” que asseia o que o branco deixa. O Estado Brasileiro, em sua fase monárquica, permitiu a predação dos africanos, que foram sequestrados de suas famílias, por meio do sistema de escravidão implantado ao longo dos séculos. Em sua fase republicana, o Estado atua com outros tipos de estratégias institucionalizadas de dominação.

Seguindo os passos da história brasileira, vê-se objetivamente que a trajetória social do negro sempre foi retratada por muitos brilhantes (ou não) literatos nacionais, sendo esses, em sua imensa maioria, brancos. Há grandes discriminações para com os afrodescendentes no Brasil e no mundo. Os negros são as principais vítimas da maioria dos casos de homicídios no país.

Resquícios da mentalidade patriarcal escravocrata e branca do Brasil colônia, disseminada no século 19, fazem com que a imagem do negro ainda seja vista de maneira degenerada pela sociedade brasileira atual.

Em de 10 de dezembro de 1948, a Organização das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A ONU e suas convenções contemplam, de maneira incisiva, a obrigatoriedade do poder público em garantir a isenção na relação do Estado com todos os indivíduos. A vigência de um regime democrático se materializa de acordo com alguns alicerces basilares para a edificação do véu social. Entre esses direitos está o da igualdade. O Estado, por princípio de seu estabelecimento, deve tratamento equitativo a todos os seus cidadãos.

As práticas incessantes de privação de direitos elementares da população afrodescendente no Brasil são produzidas de forma a assegurar os privilégios sociais aos grupos etnicamente dominantes. Ao criar hierarquias sociais e processos de dominação, se estabelece e reestabelece, cotidianamente, o racismo estrutural no país.

O Brasil edificou-se nas relações entre escravistas e escravizados.

A base civil se deu nas relações de desigualdade, primeiro entre negros e brancos. A posteriori, já na República, entre negras, negros, não brancos, brancas e brancos, todos pobres. Uma perversa escala de valores sociais. Antes norteadas por ações diretas entre o opressor e o oprimido, agora, no século 21, pós-república, mediadas pelo Estado, plenamente apropriado pela classe e etnia dominante.

Uma sociedade é resultado direto da maneira como as pessoas constroem seus bens culturais. As fases de laboração de tal processo podem ser induzidas, mas tendem a fugir do controle em seus resultados. Um bom exemplo é o desenvolvimento da arte de resistência ao sistema, como é o caso da música negra dos EUA e Brasil.

É o caso da arte de Gilberto Gil, grande artista, gênio da raça – termo utilizado com muita justiça neste caso-, que foi emboscado, juntamente com sua companheira, nos corredores de um estádio de futebol, ao assistir a uma partida da seleção brasileira durante a Copa do Mundo disputada no Qatar. Com provocações e ofensas tentaram intimidá-los. Gil é negro, sua música também é.

Mesmo depois de abolida a escravidão

Negra é a mão

De quem faz a limpeza

Lavando a roupa encardida, esfregando o chão

Negra é a mão

É a mão da pureza

Negra é a vida consumida ao pé do fogão

Negra é a mão

Nos preparando a mesa

Limpando as manchas do mundo com água e sabão

Negra é a mão

De imaculada nobreza

A mão da limpeza – Gilberto Gil

*Carlos Fernandez é bacharel em Sociologia e Ciência Política, licenciado em Pedagogia, mestre em Educação e diretor do Sindicato dos Professores no Distrito Federal.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato - DF.

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Edição: Flávia Quirino